Em Portugal, o princípio da liberdade religiosa foi estabelecido pela carta constitucional de 1826. Assim, embora a religião do Estado fosse a católica, era permitido o culto de outras religiões em ambiente doméstico ou em instalações sem forma exterior de templo. Mesmo com essa aparência de tolerância religiosa, não há quem dispute a predominância do catolicismo entre o povo português e a enorme influência que o Vaticano teve sobre seus monarcas.

Ainda que tenha sido assim durante séculos, uma pesquisa sugere que os portugueses, ainda hoje reconhecidos por suas demonstrações de fé católica, cada vez mais se assemelham aos outros europeus e já constam entre os menos religiosos do mundo. Se hoje temos talvez mais ateus portugueses do que há 50 ou 100 anos, a História nos mostra que a atitude em relação à Igreja e a seus representantes nem sempre foi pacífica e, ao menos em alguns momentos, chegou mesmo a ser combativa.

Associada à Inquisição ou Tribunal do Santo Ofício, estabelecido em Portugal em 1536 e encerrado em 1821, a Igreja católica foi responsável pela perseguição, condenação e assassinato de judeus e cristãos-novos, maçons e todos os que ousassem defender uma visão de mundo que não se alinhasse a seus valores. Mesmo com o poder que deteve, a estrutura inquisitorial foi usada contra a própria Igreja após o terremoto de 1755, quando o então nobre e diplomata Sebastião José de Carvalho e Melo, que entrou para a posteridade como Marquês de Pombal (1699-1782), recebeu ordem do rei d. José para reconstruir Lisboa.

Gravura de 1755 mostrando Lisboa destruída pelo terremoto, o fogo e o tsunami.

Pombal era um déspota esclarecido, um homem culto que havia sido tocado pelo Iluminismo e que governaria com mão de ferro para não só reconstruir a capital do reino, mas também para dar ao Estado um caráter mais laico. Nesse processo, ele tanto perseguiu seus desafetos da nobreza quanto iniciou uma reforma educacional pautada pelos princípios científicos. Com o poder conquistado, Pombal conseguiu expulsar da metrópole e das colônias a Companhia de Jesus, cujo poder incomodava não só ao rei como também ao próprio papa. É conhecida a perseguição de Pombal ao jesuíta Gabriel Malagrida (1689-1761), que, entregue ao tribunal do Santo Ofício de Lisboa, foi acusado de heresia e posteriormente condenado ao garrote e à fogueira, sendo executado em um auto-de-fé no dia 21 de setembro de 1761 na praça principal de Lisboa.

O jesuíta Gabriel Malagrida – Fonte: Biblioteca Nacional de Portugal

Ao mesmo tempo em que perseguia os jesuítas, Pombal protegia a Maçonaria, sociedade iniciática estabelecida no país antes de 1733 e cujos princípios muito se aproximam aos do liberalismo que seria defendido por d. Pedro I, ele mesmo um maçom. Essa proteção, segundo Borges Grainha, teria permitido à maçonaria desenvolver-se em Portugal, “sobretudo no exército e nas classes instruídas e elevadas” (p. 63), mas não a teria protegido da perseguição a que seria submetida durante o reinado de Maria I (Maria a Louca, avó de d. Pedro I) e após a morte de Pombal.

Marquês de Pombal – Fonte: Wikimedia

Se bem que o anticlericalismo não se tornasse a tônica na cultura portuguesa após Pombal, sua ênfase entre alguns defensores do liberalismo e da monarquia constitucional parece ter sido o caso. Ao menos é isso o que se depreende do seguinte trecho (com meus destaques) de A Carta e as Cortes, escrito por José Pinto Rebello de Carvalho, primo de minha trisavó paterna e exilado durante a guerra civil portuguesa de 1828-1834 por sua defesa da monarquia constitucional de base liberal.

um dos grandes motivos polos quaes os padres sam em toda parte oppostos às ideias liberaes, provém deste estado de celibato a que seus estatutos os submettem. Alem d’um caracter habitual d’hypocrisia e d’impostura que lhes faz odia e repulsar a verdade, elles se consideram a si sos no universo, estranhos ais vinculos de familia que ligam a sociedade […] Considerando mesmo como seu supremo chefe, um soberano estrangeiro, elles nam tem patria. […] Esta classe pois deve ser absolutamente excluida da Representaçam nacional. […] o governo deste mundo não lhes pertence, e quando nelle s’intrometem perjuram sem vergonha ao ceo e à terra. […] E’d’advertir que na classe dos celibatarios […] é que o sanguinario usurpador achou seus mais execraveis asseclas, seus mais damnados cumplices.

O usurpador a que se faz menção no trecho é d. Miguel, irmão de d. Pedro, oposto a este na defesa do absolutismo e contrário, portanto, ao liberalismo. A usurpação teria sido cometida pela corte composta de homens de leis e religiosos que conspiraram para dar a Miguel o trono que, então ocupado por sua irmã e regente Isabel Maria, seria de sua sobrinha e noiva prometida Maria da Glória. A luta pelo trono poria Pedro e Miguel em lados opostos e causaria consideráveis perdas humanas .

O caráter aparentemente anticlerical de José Pinto pode ser visto também no Censor Provinciano, periódico que editou entre 1822 e 1823 quando era ainda estudante de Medicina na Universidade de Coimbra. Eis o trecho que sugere esse aspecto de sua personalidade, com meus destaques:

Levantou-se o Sr. ex-Capitão e disse: “Muitos individuos se tem introduzido nesta sala; isto não é conveniente: nossos objectos literarios são sómente da nossa competencia; requeiro que sáia todo o povo, que aqui tem concorrido.” Á ordem, disse o Sr. Presidente, nada de Sessões secretas… poderiamos ser taxados de Pedreiros Livres; oução embora todas as nossas sandices; antes quero que me chamem um pedaço de asno do que Pedreiro Livre (Muitos applausos, e toda a assembleia deu mil sinaes de approvação).

A expressão pedreiros livres seria uma tradução de freemasons, que em inglês é usada para designar os maçons, cujas origens se encontram nos construtores das igrejas medievais. Finalmente, a referência a sessões secretas também está no mesmo campo semântico, visto que a incansável perseguição da Igreja aos maçons obrigava-os a manter seus encontros em locais insuspeitos.

O trecho citado descreve uma cena que possui certo ar cômico, afinal o autor prefere ser chamado de estúpido (pedaço de asno) a ser acusado de pertencer à famosa e proscrita sociedade iniciática. Ainda não está provado que José Pinto fosse maçom, porém seu anticlericalismo, sua defesa do liberalismo – causa apoiada por inúmeros maçons – e a posição social de sua família sugerem ser essa uma hipótese muito boa para ser desprezada.


José Araújo é linguista e genealogista.


José Araújo

Genealogista

2 comentários

Genealogia Prática - Póstuma · 28 de janeiro de 2018 às 08:44

[…] fomos uma família religiosa, mas eu nunca gostei muito de padres – acredito que seja um costume de família desde […]

Genealogia Prática - Religiosidade · 21 de fevereiro de 2019 às 20:21

[…] Nesse mesmo ramo familiar posso citar também o caso de José Pinto Rebello de Carvalho (1788-1870), primo de minha trisavó paterna e padrinho de Maria Adelaide. José formou-se médico em Coimbra e envolveu-se ativamente com a política de seu tempo, tendo por conta disso sido obrigado a buscar exílio na Inglaterra e na França. Nesses países, publicou textos em que fazia defesa radical da monarquia constitucional de base liberal. Em um desses textos, chega a usar palavras duras para falar do próprio pontífice. […]

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