A seção Figuras Ilustres do portal do município português de Tabuaço, em Viseu, informa que José Pinto Rebello de Carvalho (1788-1870) foi um escritor, político e médico muito envolvido na causa do liberalismo e cita alguns dos principais eventos de sua biografia e dos textos que ele publicou. Do texto descritivo apresentado, extraio a seguinte passagem, com meus destaques no texto:

Em Barcos, exerceu as funções de médico do “partido municipal” e, talvez devido a perseguições políticas, muito embora o local lhe fosse favorável, pois sempre se debateu pelo liberalismo, teve de fugir com a filha para o Brasil, onde foi hospedar-se em casa dum amigo, advogado português, Inácio da Silva Sequeira, na pequena cidade açucareira de Campos, nas margens do rio Paraíba. Constou-se que este seu “amigo” lhe provocou dolorosos desgostos, e o Dr. José Pinto Rebelo de Carvalho morreu em redor de grande miséria.

Se usarmos um padrão literário de análise, poderíamos dizer que José foi um protagonista que, em certo momento de sua vida, encontrou um antagonista poderoso – o advogado Inácio. Descobrir mais sobre esse antagonista passou a ser um dos objetivos de minha investigação sobre os últimos 20 anos de vida de José, que fora primo de minha trisavó paterna.

A primeira informação relevante sobre Inácio veio justamente da descrição destacada acima: ele era advogado, portanto bacharel. José Pinto, também identificado dessa forma em alguns assentos paroquiais, havia estudado em Coimbra, portanto buscar informações sobre Inácio no banco de dados da Universidade era uma conclusão lógica que se revelou frutífera. Segundo registro encontrado, Inácio matriculou-se na Faculdade de Direito em 26 de outubro de 1813, portanto foi contemporâneo de José Pinto na UC. O registro informa que ele era natural da freguesia de Lobão – provavelmente localizada no município de Santa Maria da Feira, no concelho de Aveiro -, porém não informa os nomes de seus pais. Nenhum outro registro foi encontrado na base de dados da Universidade de Coimbra, portanto o lógico seria buscar a próxima informação relevante na descrição do portal de Tabuaço: Inácio se estabeleceu “na pequena cidade açucareira de Campos”, no Rio de Janeiro. A evolução da pesquisa se daria nessa direção.

Por meio da base de dados Hemeroteca Digital, foram encontradas diversas referências ao advogado português Ignacio da Silva Siqueira, representando diferentes momentos de sua vida no Brasil. As primeiras referências dizem respeito à sua chegada, e foram encontradas na edição 276 do Correio Mercantil, e Instructivo, Político, Universal e na edição 8541 do Diário do Rio de Janeiro, ambas de 6 de novembro de 1850. Segundo notas publicadas nesses periódicos, chegou ao Porto do Rio de Janeiro, após 49 dias de navegação desde o Porto de Lisboa, a barca portuguesa Flor de Panque, com 280 toneladas, que tinha entre seus passageiros o “Dr. Ignacio da Silva Siqueira”. O registro seguinte foi encontrado na edição 305 do Jornal do Commercio, de alguns dias após o desembarque. Trata-se de um agradecimento dos passageiros da Flor de Panque, dentre os quais o “bacharel Ignacio da Silva e Siqueira”, ao capitão Vicente Anastácio Rodrigues e ao piloto Antônio José Rodrigues “pelas delicadas, civis e attenciosas maneiras com que os obsequiarão; assim como pelo optimo tratamento que experimentárão durante toda a viagem”. O texto integral pode ser visto na imagem abaixo.

Jornal do Commercio – Edição 305/1850

A referência seguinte, encontrada na edição 89 do já citado Correio Mercantil, e Instructivo, Político, Universal, trata, ao que tudo indica, da transferência de Inácio da capital para a “pequena cidade açucareira de Campos”. É a nota da partida, no dia 13 de abril de 1851, do vapor Macahense para a cidade de Campos. O Dr. Ignacio da Silva Siqueira está na lista de passageiros de diferentes nacionalidades, alguns dos quais levam também seus familiares e “vários escravos”.

Nos anos de 1853 e 1854, Dr. Inácio parece estar estabelecido em Campos, e seu nome é citado na edição 10 de 1853 do Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial. Curiosamente, a citação se encontra na relação de clérigos. Ele voltaria a ser citado nessa publicação na edição 16 de 1859 como advogado e na edição 18 de 1861 como clérigo e advogado. Até que se encontre informação de outra fonte que contrarie a interpretação possível aqui, tudo indica que o antagonista de José Pinto exerceu duas funções importantes na cidade de Campos.

A partir de 1857 encontramos algumas referências que demonstram o interesse de Inácio em obter a cidadania brasileira – processo esse iniciado bem antes, como se verá no parágrafo seguinte. A primeira dessas referências está na edição 121 do Correio da Tarde e trata-se de nota sobre um requerimento do “Dr. Ignacio da Silva e Siqueira, e Manoel da Rocha Leão, pedindo dispensa do lapso de tempo para poderem naturalisar-se cidadãos brasileiros”.

Segundo a edição 223 do Jornal do Commercio, na sessão de 11 de agosto de 1857, “A commissão de constituição examinou as representações dirigidas a esta augusta camara por diversos individuos, pedindo dispensa de tempo para obterem carta de naturalisação […]”. Entre esses indivíduos estava:

Ignacio da Silva Siqueira, subdito portuguez, formado em direito na universidade de Coimbra, residente no imperio desde 5 de novembro de 1850, e que perante a camara municipal da cidade de S. Salvador de Campos fez, a 23 de Dezembro de 1856, a declaração prescripta pela lei de 23 de Outubro de 1832.

O requerimento de abreviação de prazo foi aceito, como se pode ler na edição 4 e na edição 5 dos Annaes do Parlamento Brasileiro, na edição 243 do Jornal do Commercio, na edição 228 do Diário do Rio de Janeiro e na edição 184 e na edição 215 d’O Correio da Tarde.  Na edição 122 d’A Patria: Folha da Província do Rio de Janeiro, entretanto, encontramos uma nota curiosa, na qual se lê que:

Na camara dos deputados apresentaram-se mais dous portuguezes desesperados por ajudar-nos a felicitar este amaldiçoado torrão: são elles o Dr. Ignacio da Silva e Siqueira, e Manoel da Rocha Leão que em pouco tempo os vereis tirando o pão aos nossos patricios […]

A linguagem empregada (“mais dous portugueses desesperados”, “amaldiçoado torrão” e “tirando o pão aos nossos patrícios”) sugere que havia animosidade de brasileiros contra portugueses, o que pode ter gerado alguma oposição aos processos de naturalização, em especial de profissionais com a formação acadêmica de Inácio. Para comprovar tal conclusão seria necessário buscar mais provas documentais, o que foge do propósito deste texto.

As referências seguintes datam da década de 1860 e dizem respeito a questões legais em que nosso personagem é citado ora como padre Dr. Ignacio da Silva Siqueira (edição 312 de 1863 do Correio Mercantil, e Instructivo, Político, Universal; edição 33 de 1865 do Diário do Rio de Janeiro) ora apenas como Dr. Ignacio da Silva Siqueira (edição 350 de 1863 do Diário do Rio de Janeiro).  As referências encontradas terminam na década de 1860, embora tenham sido encontradas referências posteriores a um Julio Ignacio da Silva Siqueira, que poderia ser um parente próximo ou descendente do antagonista de José Pinto Rebello de Carvalho.

Até onde consigo comprovar, Inácio e José não eram aparentados. No entanto, como suas vidas se entrelaçaram em algum momento e com um desfecho aparentemente trágico, entendo ser justificado o interesse na descoberta das trajetórias de vida de ambos.


José Araújo é linguista e genealogista.