Neste terceiro texto sobre o evento da morte – leia aqui o primeiro e aqui o segundo -, o foco será o testamento,  o qual se tornou o instrumento de nomeação do herdeiro, tal como é hoje, durante o Império Romano. Com a queda do Império Romano, e posteriormente com a crescente influência da Igreja Católica, tornou-se também um instrumento de salvação da alma. Todo bom cristão deveria deixar um testamento, como se diz na expressão corriqueira, “para seu bem de alma” de modo a evitar morrer sem fazê-lo ou, como se diz em latim, ab intestato.

Via de regra, um testamento continha a encomenda de certa quantidade de missas para a alma do moribundo e também para as de seus pais e filhos, para seu anjo da guarda e um ou mais santos de devoção. Além disso, podia haver a indicação do tipo de mortalha em que o corpo deveria ser envolto e, por vezes, do local onde deveria ser enterrado. Em certos casos, havia ainda orientações sobre as esmolas a serem distribuídas. Concluída a exposição dos últimos desejos relacionados ao lado espiritual, eram apresentadas as disposições relacionadas à herança: nomeação do testamenteiro, dos herdeiros e dos bens a serem repartidos, entre outras.

O assento de óbito que apresento a seguir ilustra bem essa dupla função espiritual-material, embora esteja relatado no texto que existia um testamento propriamente dito, do qual as disposições foram trasladadas.

Óbito de Jerônima de Araújo – 20/05/1805 – Tabuaço, Viseu – página 1
Óbito de Jerônima de Araújo – 20/05/1805 – Tabuaço, Viseu – página 2

Aqui a transcrição:

Aos 20 dias do mês de maio de 1805 anos, faleceu da vida presente Jerônima de Araújo, mulher de Antonio Pinto Rebello com todos os sacramentos e foi enterrada dentro da igreja desta freguesia, amortalhada em um hábito de freira e com testamento fixado. Entre outras coisas que continha [no] testamento, disse que deixa por sua alma cem missas e mais dez pelas almas de seus irmãos e seus pais e ao anjo de sua guarda [dez], pelas suas penitências mal cumpridas dez e a virgem Maria Nossa Senhora dez, um ofício de corpo presente tudo por uma vez somente. E disse mais ela testadora que deixava [metade] da[s] casa[s] em que vivia a Francisco Pinto, filho de seu marido Antonio Pinto Rebello, e os mais bens deixa a seus sobrinhos de Santa Leocádia, os quais [constituía] por seus herdeiros e deixava por seu testamenteiro seu marido Antonio Pinto para lhe dar cumprimento ao seu bem da alma, sem recompensa, disto lhe deixava a metade dos bens móveis que [] por sua morte sua[s] casa[s] em que vive e na falta do seu marido a seu sobrinho Francisco Antonio. Declarou mais que deixava a metade da[s] sua[s] casa[s] em que [] a Francisco Pinto, filho de seu marido assim como também a metade dos seus bens móveis aos dito seu marido Antonio Pinto para dar cumprimento a seu bem da alma como atrás fora declarado e isto e não se continha mais no dito testamento. [] mandei fazer este assento que assinei dia, mês ut supra. – o pároco Manoel José [dos Santos]

Embora no século XVIII o testamento já pudesse ser registrado na forma pública, isto é, redigido por tabelião em cartório, em Portugal, principalmente longe dos grandes centros urbanos, o costume era fazer testamento aberto, escrito pelo próprio testador ou outra pessoa. A Igreja por muito tempo se opôs a abrir mão, em favor do Estado, do direito de registrar testamentos, o que só ocorreu a partir das reformas liberais e laicizantes do século XIX.

Dada essa disputa e as diversas formas como se registravam os testamentos em Portugal, localizar hoje esses documentos para fins genealógicos não é uma tarefa muito fácil, pois podem estar dispersos por arquivos paroquiais, notariais e de outras entidades.


José Araujo é linguista e genealogista.


José Araújo

Genealogista

1 comentário

Genealogia Prática - Temores · 15 de março de 2019 às 09:58

[…] caso que poderia despertar má vontade na pesquisa genealógica seria a disputa pelo espólio de um parente rico, caso que suponho também não se aplique à família do já citado […]

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