Se “é grande a probabilidade de todos os portugueses terem pelo menos um padre em sua árvore genealógica”, como afirmam Queiroz e Moscatel, quantos religiosos poderia haver em uma família?
Não pretendo responder essa pergunta em termos absolutos, pois não disponho dos dados históricos, mas posso discutir um aspecto sobre essa questão a partir de um caso de minha família encontrado no assento de óbito que transcrevo abaixo com meus destaques.

Aos nove dias do mês de novembro de 1807, faleceu da vida presente Maria Clara, viúva que ficou de Luis de Amaral, natural desta vila de Barcos. Recebeu os sacramentos da penitência, sagrado viático e extrema-unção e seu corpo foi sepultado dentro desta igreja no dia dez do dito mês em que se lhe fez um ofício de corpo presente. Também fez testamento [fechado] em que dispôs além de outras coisas em quanto ao [] o seguinte: que seu corpo fosse sepultado na igreja matriz desta vila, e [] conforme o uso e costume, amortalhada com um hábito com ofício de corpo presente e, sendo dia impedido, no sucessivo, acompanhada com  as [] das confrarias, às quais se dará de esmola, por uma vez somente, a do Santíssimo, mil e duzentos réis, e acada uma das outras [] das almas o [] de um alqueire de pão que então tiver a cada qual e por minha alma se dirão cem missas, e mais de tenção particular que deixo [] 23 de esmola costumada e uma vez somente. E [] dos bens temporais que deixava [para sempre] sua filha Maria Theresa o terço de seus bens, que das suas últimas disposições testamentárias [bem de alma] [] lhes restassem, com obrigação de contribuir anualmente ao seu filho [Frei] Francisco de Jesus, com a tença de 24.000 réis enquanto vivo for, à cuja tença serão sempre obrigados os bens do terço [e para onde quer que passarem, irão onerados] [] até a hora em que ele faleça, cujo terço [] no campo do [] com todas as suas árvores e mais [] também disse a dita testadora que nomeava sua filha Maria Theresa por sua testamenteira para dar cumprimento ao seu bem da alma, e mais disposições testamentárias com o tempo de três anos para dar conta do seu cumprimento [] juízo a que tocar, e na sua falta ao meu genro Antonio de Macedo, de quem espero inteira satisfação e por verdade fiz este termo de assento que assinei na ausência do respectivo pároco, que estou substituindo, era mês e ano ut supra. Pelo respectivo pároco. Ecônomo padre Manoel Duarte dos Santos

Frei Francisco de Jesus foi tio-avô de meu bisavô paterno. Maria Clara, sua mãe, teve outro filho que seguiu a vida religiosa: José Pereira da Motta, sobre quem falei em outro texto. O interessante neste longo assento de óbito são as disposições testamentárias de Maria Clara, que deveria ser uma senhora de algumas posses, de cuja administração resultaria a tença de 24.000 réis que frei Francisco deveria receber enquanto vivo.

Corrobora a interpretação de que Maria Clara era uma senhora de posses o fato de ter outro filho religioso, pois a ordenação religiosa só ocorria a partir de uma detalhada investigação dos antecedentes do candidato – a inquirição de genere – cujas despesas ficavam por conta do interessado. Além disso, aquele candidato que buscasse a ordenação deveria ter condições financeiras ou patrimônio que garantisse sua sustentação.

Aqui se vê o assento original:

Óbito de Maria Clara – 9/11/1807 – Barcos, Tabuaço, Viseu

José Araujo é linguista e genealogista.


José Araújo

Genealogista