O trabalho genealógico sempre foi feito a partir de provas documentais, ou seja, assentos paroquiais, certidões civis, testamentos, inventários, cartas e fotografias. Obras de cunho genealógico, principalmente quando fundamentadas nos documentos já citados, são também valiosas e, mais recentemente, os testes genéticos surgiram para auxiliar na pesquisa quando existem ramos de difícil documentação, embora seu uso ainda seja limitado pela resolutividade dos testes e pela complexidade da análise de seus resultados.

De todo modo, a preponderância das provas documentais persiste, e elas deveriam nos guiar no percurso ascendente de nossas árvores familiares. Deveriam, mas às vezes trazem informações que nos geram dúvidas. Assim foi com o inventário de minha pentavó Inácia Angélica de Moraes (1775-?), no qual em determinado ponto se informa o seguinte:

Declarou mais a inventariante que a Herdeira Maria Tereza, mulher do coherdeiro acima, se acha ausente de seu marido, e nessa ausência está devendo ao Casal dinheiros de empréstimos além das quantias acima, e sem clareza oito mil quatrocentos e vinte réis sem clareza.

Maria Tereza da Paz (1791-1855) foi minha tetravó materna. O coerdeiro citado no trecho foi seu marido, o capitão Joaquim Francisco do Rego. O casamento de ambos deve ter ocorrido em 1810, pois a habilitação de seu casamento foi encontrada no Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro por pesquisador do Projeto Compartilhar. Desse casamento nasceram ao menos dois filhos já conhecidos: José e Pedro Gomes de Moraes, este meu trisavô.

Quando li o trecho do inventário destacado acima, fiz duas interpretações: Maria Tereza estava ausente de seu marido porque estavam maritalmente separados, ou estava ausente dele porque ele estava em alguma missão em local distante do domicílio, o que caracterizaria uma ausência meramente física. O assunto teria permanecido envolto em mistério não tivesse havido a descoberta do assento de óbito do capitão, que transcrevo a seguir.

Aos dezoito dias do mês de junho de mil oitocentos e trinta e sete, sepultou-se no cemitério desta matriz de Santa Anna de Itacuruçá o capitão Joaquim Francisco do Rego, de idade setenta e tantos anos, pouco mais ou menos, que foi casado com dona Maria Tereza da Paz. [Finou] no lugar chamado de Muriqui, território desta freguesia, onde vivia já há [dezesseis] anos separado de sua mulher. Recebeu os sacramentos e foi amortalhado em […] preta. Foi encomendado pelo reverendo vigário de Guaratiba e acompanhado por vários sacerdotes. Não fez testamento. Que para constar fiz este. O vigário Inácio José Justiniano Braga.

Óbito do Capitão Joaquim Francisco do Rego

O registro não parece deixar margem para interpretações: o casal estava maritalmente separado há 16 anos, afinal a distância entre Muriqui, onde ele faleceu, e freguesia de São Pedro e São Paulo, onde ela vivia, poderia ser percorrida em poucos dias. Nada além de um rompimento matrimonial justificaria mais de uma década de separação física.

Mas o mais interessante é que o óbito informa que eles estavam separados, sem menção a que os laços matrimoniais tivessem sido oficialmente rompidos. E sabe-se que Maria Tereza teve outro relacionamento do qual resultaram mais filhos. Seu novo parceiro chamava-se Pedro Cipriano Pereira Belém (1795-1860). Em seu testamento, ele declara ser solteiro, estado em que teve e reconheceu os filhos que nomeia como seus herdeiros, sem contudo nomear a mulher com quem os teve.

Declaro que sou solteiro, em cujo estado tive cinco filhos de nomes Manoel Pereira Belém; Francisco Cipriano Pereira Belém, solteiro; Maria José Belém, casada com Leocádio Pamplo, digo, Pamplona Cortes; Francisca Pereira Belém, casada com Manoel Inácio Barbosa, os quais se acham perfilhados e legitimados por escritura pública passada no Cartório do Tabelião da […] freguesia do Bananal, os quais os reconheço como meus filhos para que possam entrar na herança de meus bens, direito e ações como se fossem havidos de legítimo matrimônio como meus únicos herdeiros que são […] Declaro que nomeio para meus testamenteiros e administradores de meus bens em primeiro lugar a meu filho Manoel Pereira Belém, em segundo lugar a meu filho Francisco digo Fernando Pereira Belém […]

Pelos assentos batismais dos netos de Pedro Cipriano, sabemos que minha trisavó Maria Tereza da Paz foi a mãe dos filhos dele. E, por estimativa, sabemos que ela teve esses filhos enquanto ainda estava casada com – mas apartada de – seu marido e meu trisavô Joaquim Francisco do Rego.

Alguns casos conhecidos da família imperial do Brasil demonstram que relacionamentos similares ocorriam, mas meus familiares não eram membros da nobreza. Acredito que mesmo entre os plebeus esses casos tenham ocorrido, mas posso apenas imaginar o escândalo que tudo isso pode ter representado na época.


José Araújo é genealogista.


José Araújo

Genealogista

4 comentários

Paz – Genealogia Prática · 22 de abril de 2022 às 10:35

[…] Joaquim Francisco do Rego, pois esse faleceria em algum momento nos idos de 1820 (retificado: ele faleceu em 1837). Na condição de viúva (retificado: enquanto separada do marido), ela teria um relacionamento […]

Meio – Genealogia Prática · 1 de agosto de 2022 às 17:27

[…] como seus os filhos que tivera com Maria Tereza da Paz (1791-1855), com quem nunca se casou por já ser ela casada, embora vivesse separada do marido Joaquim Francisco do Rego […]

Alexandre – Genealogia Prática · 24 de janeiro de 2024 às 14:41

[…] nasceram cinco filhos reconhecidos pelo pai em seu inventário, porém sem menção à mãe, que ainda era casada com o capitão Joaquim Francisco do Rego (1766-1837). Esse relacionamento sugere que havia uma relação muito próxima entre os Pereira […]

Plantel – Genealogia Prática · 24 de janeiro de 2024 às 14:42

[…] de Joaquina da Conceição e Pedro Gomes de Moraes, que nunca se casaram. No mesmo texto, mencionei a relação extramatrimonial entre a mãe de Pedro Gomes de Moraes e o agricultor escravocrata Pedro… (1795-1860), filho de Francisco Antônio Pereira Belém (1746-1834) e Joana Maria de Jesus […]

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