Se posso dar uma dica para quem se inicia na pesquisa genealógica ela seria a seguinte: leia toda fonte documental com olhos de detetive. Imagine que cada documento encontrado, seja um assento paroquial ou um testamento, vai fornecer pistas para esclarecer aspectos insuspeitos das vidas das pessoas nele citadas. Esses aspectos podem envolver algo trivial como a natureza do relacionamento entre os pais e os padrinhos nomeados no assento de batismo de uma criança.

Mas também podem ser algo bem mais complexo, como o porquê de os pais de um noivo não terem sido nomeados em seu assento matrimonial. Essa aparente omissão seria plausível se o noivo fosse filho de pais desconhecidos, mas não foi o caso. José Gomes de Moraes (1820-1885), o noivo, era descendente de uma família bastante prolífica, de muitas posses e que descendia dos primeiros colonizadores de São Vicente e São Paulo por um ramo e dos primeiros colonizadores do Rio de Janeiro por outro ramo. Fausta Angélica de Moraes, a noiva de José, era sua prima de primeiro grau, pois ambos eram netos de Francisco Gomes Pereira (1764-1822) e Inácia Angélica de Moraes (1775-1822).

O casamento de José e Fausta precisou receber dispensa porque houve “impedimento de consanguinidade em 2° grau da linha colateral igual [visto que] Maria Teresa da Paz, mãe do orador José Gomes de Moraes, [era] irmã legítima de João Pinheiro de Souza Moraes, pai da oradora Fausta Angélica de Moraes”. O que justificaria, então, que o assento matrimonial não contivesse os nomes dos pais de José, como se vê abaixo em imagem e transcrição?

Assento matrimonial de José Gomes de Moraes – Valença, RJ, 1847

Aos vinte e sete dias do mês de novembro de mil oitocentos e quarenta e sete, no oratório da Fazenda de Santa Cruz, depois de os contraentes serem dispensados do impedimento de consanguinidade havido entre eles […] presentes as testemunhas Joaquim Pinheiro de Souza e Fernando Pinheiro de Souza Moraes, administrei o sacramento do matrimônio e dei as bênçãos nupciais na forma do ritual romano aos contraentes José Gomes de Moraes, filho [ESPAÇO DE QUASE UMA LINHA] e Fausta Angélica de Moraes, filha legítima de João Pinheiro de Souza Moraes e de Luísa Angélica da Conceição, ambos naturais e batizados na freguesia de Marapicu e residentes nesta de Valença.

Minha suspeita é que essa omissão dos nomes dos pais do noivo seja um silêncio proposital a respeito de um escândalo envolvendo a identidade do pai biológico de José Gomes de Moraes. José, por sinal, nunca foi conhecido pelo sobrenome da família do homem com quem Maria Teresa da Paz, sua mãe, se casou por volta de 1810: Joaquim Francisco do Rego. Gomes e Moraes são sobrenomes apenas da família de Maria Teresa.

Maria, aparentemente depois de casada com Joaquim Francisco, teve um longo relacionamento extraconjugal e cinco filhos com Pedro Cipriano Pereira Belém (1795–1860), que pertencia a uma das famílias da elite agrária da região de Marapicu e Itaguaí e, como argumento em texto anterior, satisfaria várias condições para ser o real pai biológico de outro filho de Maria chamado Pedro Gomes de Moraes – meu trisavô materno. A omissão dos nomes dos pais no assento matrimonial de José Gomes de Moraes poderia sinalizar algo que talvez já fosse de conhecimento notório da sociedade local: que o poderoso Pedro Cipriano fosse o pai de todos os filhos de Maria Teresa.

Mas esse não seria o único escândalo relacionado ao provável pai biológico dos irmãos Gomes de Moraes. Suspeitava-se, por exemplo, de que Pedro Cipriano estivesse associado com um sobrinho no roubo de escravizados de outros fazendeiros, como se lê em carta publicada em jornal da época e transcrita abaixo.

Snr. Redactor. – Para que mais se convença o publico da capacidade dos homens escolhidos pelo aurelianismo para os empregos, sobre-tudo para policiarem esta provincia do Rio de Janeiro, vou rogar-lhe a publicação do documento junto.
Por esse documento se mostra, que Francisco Pereira de Lemos sobrinho, íntimo amigo, e 1º suplente, e consorcio do famoso subdelegado Pedro Cypriano Pereira Belem, se acha pronunciado por furto de escravos. Era entretanto esse Francico Pereira de Lemos o braço direito de Belem, assim como este o era da passada administração da freguezia de S. Pedro e S. Paulo: eram estes homens os Benjamins do aurelianismo, contra os quaes tantas vezes debalde representaram os mais honrados e distinctos moradores daquella freguezia.
Se a impudencia desse homem o levou a commetter um furto de que ha testemunhas presenciaes, calcule o publico de quantas violencias, de quantas extorsões, de quantos manejos para haver dinheiro, não foram victimas os habitantes daquelle lugar. Com a publicação muito obrigará o
Seu constante leitor.

Mandado de prisão passado contra Francisco Pereira de Lemos.
O Dr. José Bonifacio Nascentes de Azambuja juiz municipal nesta villa de Itaguahy.
Mando a qualquer official de justiça de ante mim que visto este por mim assignado em seu cumprimento prendam e recolham ás cadêas desta villa a Francisco Pereira de Lemos visto estar o mesmo pronunciado á prisão e livramento como incurso no artigo 269 do codigo criminal pelo crime de furto de escravos na queixa que contra elle deu Carlos Dantas de Sá Freire. Cumpram. Itaguahy, 13 de outubro de 1848. Eu Felicio Vereato Brandão que o escrevi. – Felicio Vereato Brandão.

Este caso demonstra como uma aparente omissão em documento paroquial pode ter sinalizado algo sobre as vidas de pessoas que viveram no século XIX e que pareceria insuspeito aos olhos de um pesquisador contemporâneo desavisado.

A vida de Maria Teresa da Paz é contada em microbiografia publicada recentemente.


José Araújo é genealogista.


José Araújo

Genealogista