Em texto anterior, afirmei que os documentos familiares – assentos, certidões, cartas – encontrados durante uma pesquisa devem ser transcritos para permitir sua leitura e aproveitamento futuros. A transcrição é necessária para que possamos assegurar que nossos parentes e descendentes compreendam a caligrafia ruim ou rebuscada dos séculos passados. Apenas dessa forma detalhes contidos nos documentos e que hoje parecem insignificantes poderão ter seu valor devidamente comprovado em algum momento.

Um exemplo que posso citar de minha experiência é a imagem digitalizada do registro na Hospedaria de Imigrantes de meu avô paterno Antônio e sua primeira família, que chegaram ao Brasil em abril de 1905 pelo porto de Santos (SP). Como se trata de uma imagem grande, fiz a montagem dos trechos relevantes que pode ser vista abaixo. Nesse registro, além dos nomes e de outras informações pessoais de cada membro da família imigrante, há informações sobre o destino no Brasil, o fazendeiro responsável pela vinda do imigrante e algumas observações.

Extrato do Livro de Matrícula – Fonte: Hospedaria de Imigrantes do Estado de SP

Como meu avô foi, de fato, agricultor, nunca dei muita atenção às informações de natureza não pessoal registradas no livro da Hospedaria, do qual inicialmente extraí apenas nomes e idades para incluir na árvore familiar. Com o tempo, no entanto, as informações inicialmente não aproveitadas – portanto não transcritas – produziram curiosidade, pois sei que minha família paterna está há mais de um século estabelecida no estado do Rio de Janeiro. Não há relatos de permanência ou fixação no estado de São Paulo. E por que a família teria chegado pelo porto de Santos e não pelo do Rio de Janeiro? Essas dúvidas e perguntas me levaram a fazer uma leitura mais detalhada e, finalmente, uma transcrição do texto desse registro, em especial da coluna Observações:

Por conta do decreto 1255 de 17/12/1904 e no regime do decreto 823 de 20/09/1900

Na busca por esses decretos, descobri que eles regulamentavam a Lei 673, de 9/09/1899. Tal lei estabelecia subvenção estatal para armadores ou companhias de navegação que dispusessem de “vapores nas necessarias condições de hygiene e de rapidez de viagens” para promover a introdução da mão de obra europeia para o trabalho agrícola no estado de São Paulo. A quantidade de imigrantes permitida, que determinaria o valor global da subvenção, era estabelecida anualmente em função do orçamento disponível.

A lei foi inicialmente regulamentada pelo Decreto 823, de 20/09/1900, que determinou a fração de subvenção paga aos armadores e companhias por idade do imigrante – inteira para maior de 12 anos, 1/2 para maior de sete a 12, 1/4 para maior de três até sete anos, enquanto os menores de três anos deveriam ser transportados gratuitamente. Cada família deveria possuir ao menos um membro apto para o trabalho, ou seja, um indivíduo do sexo masculino entre 12 e 45 anos de idade. O desembarque deveria ser realizado no porto de Santos ou, na impossibilidade desse destino, no porto do Rio de Janeiro. O decreto deveria, enfim, criar as condições para realizar, nos países europeus, propaganda favorável da emigração para o trabalho agrícola em São Paulo.

A subvenção garantia ao imigrante a cobertura de despesas de transporte do porto de Santos até a hospedaria, onde ele teria alojamento garantido, por até oito dias, à custa do estado paulista, exceto se fosse destinado a uma colônia estatal, o que lhe garantia hospedagem sem custo até o momento de deslocamento ao destino. Seu posto de trabalho poderia ser conseguido com auxílio da agência oficial, bem como seu transporte da hospedaria até a “estação mais próxima da situação agrícola” a que se destinasse. O imigrante que viesse por sua própria conta teria direito a reembolso da passagem se comprovasse sua colocação na lavoura.

Finalmente, o Decreto 1255, de 17/12/1904, citado no registro, estabeleceu em 10.000 o número de imigrantes – exclusivamente europeus e “constituídos em familias de agricultores” – a serem introduzidos no estado de São Paulo até 31 de dezembro do ano seguinte. O Decreto também estipulava o valor da subvenção por imigrante e por nacionalidade, sendo que os valores para espanhóis e portugueses eram relacionados separadamente em relação ao de outros cidadãos europeus. Se transportassem famílias com mais membros aptos para o trabalho os armadores ou companhias de navegação fariam jus a um prêmio por indivíduo. O mesmo Decreto, no entanto, estabelecia que imigrantes que fossem rejeitados por motivo de saúde deveriam ser repatriados à custa dos transportadores.

Essas informações sugerem que, aparentemente, meu avô aproveitou a política de incentivo à imigração oferecida pelo Brasil para vir para o Brasil e trazer consigo sua já numerosa primeira família sem aparentemente ter de desembolsar seus próprios recursos, embora pudesse tê-los como herança familiar sua ou de sua primeira esposa. Os recursos pessoais não desembolsados com a viagem marítima e com a hospedagem inicial talvez tenham sido usados para iniciar a nova vida no Rio de Janeiro, onde ele viria a se estabelecer.

Algumas questões, no entanto, permanecem sem resposta:

  1. Como não havia filhos maiores de doze anos, Antônio realmente trabalhou algum tempo só na lavoura paulista? Ou o trabalho na lavoura fora apenas um subterfúgio, uma ficção, para permitir o aproveitamento das vantagens garantidas para os imigrantes?
  2. Por que apenas sua filha mais nova – Delphina, de um ano – teve como suposto destino declarado no registro a capital do estado e não a cidade de Rio Claro como os demais? Estaria doente? Teria a família na verdade tomado outro destino que não a lavoura paulista?
  3. Quem era o fazendeiro Eduardo Avarinho Castro, que supostamente garantiu o emprego que assegurou a vinda de meu avô para o Brasil? Seria um amigo que ajudou na criação da ficção da família imigrante portuguesa destinada à lavoura?

Não creio que consiga respostas para essas perguntas, porém não posso deixar de registrá-las. De qualquer forma, elas não existiriam sem a leitura detalhada e transcrição do registro no livro da Hospedaria.

As lições aprendidas são:

  1. Nunca desprezar nenhuma informação registrada em uma fonte documental;
  2. Sempre transcrever toda a informação textual; e
  3. Descrever a informação não textual – sinais, carimbos, assinaturas – eventualmente disponível.

José Araújo é linguista e genealogista.


José Araújo

Genealogista

1 comentário

Genealogia Prática - Alfaiate · 21 de novembro de 2018 às 07:53

[…] do café propiciou a importação de trabalhadores europeus, principalmente espanhóis, italianos e portugueses, que chegavam ao Brasil na virada do século XIX para o XX sonhando com a promessa de obter a posse […]

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