O envio de escravos africanos para a América foi, sem dúvida, um dos maiores movimentos populacionais da história e a maior emigração por mar antes da grande emigração europeia, também para as Américas, que se desenvolveu justamente na medida em que o tráfico de escravos no Atlântico conheceu seu fim. _ História da África e dos africanos – Analúcia Danilevicz Pereira, Luiz Dario Teixeira Ribeiro, Analúcia D. Pereira, Paulo F. Visentini, Luiz D. Ribeiro

Faz pouco mais de 130 anos que a escravidão deixou de ser praticada oficialmente no Brasil. Considerando o que se fez desde então para reparar os malefícios decorrentes desse regime, podemos afirmar – embora não devêssemos – que é muito pouco tempo em vista dos 300 anos que durou o tráfico de africanos escravizados para trabalho nos diversos ciclos da economia brasileira – lavouras de açúcar, cacau e café e mineração.

Esses 130 anos representam para mim algo bastante fácil de mensurar, pois dentro deles cabem as vidas de meus bisavós maternos João Pereira Belém e Theodora Maria da Conceição, um dos quais foi afrodescendente, se não ambos. Embora não haja informação de que um deles tenha sido escravizado em vida, a identificação de meu avô e de meus tios maternos como ‘pardos‘ em seus registros de batismo e óbito não me permite duvidar de minha ascendência africana. Por essa razão, não tenho dúvidas de que houve escravizados em minha linha materna.

Esse reconhecimento traz algumas implicações importantes para minha história familiar e pessoal, uma das quais é relativa à dificuldade de contar essa mesma história. Em vista da tentativa feita pelo Estado de apagamento dos factos pela destruição dos registros comerciais do tráfico, por ordem do ministro Ruy Barbosa, afrodescendentes como eu têm relativamente menos informações com que produzir um estudo genealógico do que os descendentes de imigrantes europeus.

O Estado de S. Paulo – 19/12/1890

Por conta desse crime oficial e por causa de preconceitos que até hoje são usados para justificar o tráfico ou atenuar os males da economia escravocrata – p.ex. a suposta inferioridade das sociedades africanas e escravização de africanos por africanos -, poucos são os afrodescendentes cuja genealogia é conhecida até algum grau. De modo geral, são pessoas – ativistas, artistas – que tiveram uma atuação relevante durante o regime escravocrata ou depois de sua extinção oficial.

Os obstáculos que se apresentam para quem desejar conhecer e contar a história de seus ascendentes africanos escravizados não são desprezíveis. Mas eles deveriam servir de estímulo, pois há muito o que revelar a respeito deles que só há algumas décadas veio ao conhecimento dos pesquisadores, tal como suas estratégias de resistência, suas formas de organização na diáspora e seu legado cultural.

Defendo que a narrativa dessa história não deva ficar apenas nas mãos dos pesquisadores. Ela deveria ser assumida por cada afrodescendente em um movimento de construção de sua identidade e do orgulho de suas origens. E foi como forma de compartilhar o que aprendi sobre minha história familiar e de contribuir para os que desejam assumir essa narrativa que criei o curso Genealogia Afrodescendente.

O curso apresenta conceitos fundamentais sobre a vida dos escravizados na vigência do regime escravocrata, estratégias necessárias a qualquer pesquisa genealógica e estratégias específicas para a pesquisa genealógica que envolve antepassados escravizados. Espero dessa forma ter dado minha contribuição a quem – como eu – queira conhecer e contar sua história.


José Araújo é linguista e genealogista.


José Araújo

Genealogista