A leitura de assentos paroquiais costuma ser um problema para quem se inicia na pesquisa genealógica. Além de originais parcialmente devorados por insetos ou mesmo pela química da tinta que era usada e destruía o papel ou atravessava a folha, dificultando ou simplesmente impedindo a leitura do texto, havia ainda o fator da grafia antiga, que embora seja algo complexo, é passível de aprendizagem após alguma exposição ou estudo formal. E havia os erros cometidos pelos párocos e eram retificados durante o registro, o que produziu textos com riscos e rabiscos. Embora esses erros possam parecer mais um problema, vou provar que eles podem ser nossos aliados.

Vou demonstrar aqui dois erros dessa natureza – retificados – que forneceram pistas preciosas durante minha pesquisa para elucidar um enigma de minha árvore. Esse enigma dizia respeito a um núcleo familiar descrito em trechos de diferentes volumes da fundamental obra de Carlos Rheingantz (Primeiras Famílias do Rio de Janeiro, Volumes I e II, respectivamente) que cito textualmente a seguir.

DOMINGOS DA CUNHA – n. por volta de 1616 e fal. antes de 1649, filho de Domingos (ou Duarte?) Nunes e de Maria da Cunha. Casado no Rio (Sé, 1º, 133v) a 26.7.1646 (registro a 13.8.1646, na ermida de N.S. do Bonsucesso, do licenciado padre Vicente da Costa) com Ana da Costa, n. por volta de 1626 e filha de Manuel Caldeira e de Ana da Costa.

ANTÔNIO DO LAGO PREGO – juiz ordinário em 1640, n. por volta de 1586, fal. filho de André Rodrigues do Lago e de Madalena Gonçalves Prego, naturais de Viana do Castelo, casado no Rio (Sé, 1º, 3v) a 19.6.1616 com Maria da Cunha, filha de Domingos Nunes Sardinha (fal. antes de 1616) e de Maria da Cunha.

O ponto de interesse na pesquisa era o casal Domingos Nunes – também citado como Domingos Nunes Sardinha – e sua mulher Maria da Cunha. Havia evidências de que ao menos Domingos poderia ter origens cristãs-novas. A obra do mestre, no entanto, era omissa a esse respeito, bem como a respeito de sua filiação e eventual existência de irmãos ou outros familiares. Vamos, então, observar o que os erros retificados nos originais trouxeram de possibilidades.

O primeiro erro retificado foi transcrito pelo próprio Rheingantz no primeiro item acima – “filho de Domingos (ou Duarte?) Nunes” – e está presente no assento matrimonial de Domingos da Cunha, filho de Domingos Nunes e Maria da Cunha. É esse assento que exibo abaixo com minha transcrição integral.

Em os treze dias do mês de agosto [de 1646] [?tive hum] escrito do reverendo padre Vicente da Costa [?de] como recebera por palavras de presente com bênçãos na sua ermida de Nossa Senhora do Bom Sucesso, com licença, a Domingos da Cunha, filho de Duarte [sobrescrito: Nunes / rasurado: da Cunha], digo, de Domingos Nunes e de Maria da Cunha sua mulher, e Ana da Costa, filha de Manoel Caldeira, defunto, e de Ana da Costa, sua mulher, precedendo as três admoestações e mais diligências que [?tanto] se requer, o qual recebimento fez em vinte e seis dias do mês de julho, estando presentes por testemunhas o capitão Mateus de Moura Fogaça, o capitão Gonçalo Teixeira [Tibau], o capitão João […] de Oliveira e outras pessoas.

Pelo que pudemos deduzir, o pároco parece ter confundido Domingos Nunes com um Duarte Nunes. Afora a semelhança do sobrenome e das iniciais do nome, estes últimos apresentam sonoridade e extensão bem distinta. É importante registrar sobre esse assento – como descobri na pesquisa – que Ana da Costa era irmã de Úrsula da Costa, casada com a testemunha Mateus de Moura Fogaça. Ana e Úrsula eram filhas dos cristãos-novos Manoel Caldeira e Ana da Costa. Era costume entre os cristãos-novos o casamento com membros de sua comunidade – fenômeno conhecido como endogamia.

Minha pesquisa revelou ainda que Domingos Nunes e Maria da Cunha tiveram mais dois filhos além dos já citados Domingos da Cunha e Maria da Cunha: Antônia Tavares de Oliveira e Duarte Nunes da Cunha. Sabemos que era comum dar aos filhos primogênitos os nomes de seus avós. Em vista do erro descrito acima, parece significativo que um dos filhos do casal tivesse sido batizado como Duarte Nunes.

Embora essas evidências pudessem parecer apenas circunstanciais, outras provas documentais foram encontradas que permitiram evidenciar a filiação de Domingos Nunes. Essas provas têm relação com o segundo erro retificado, que está no assento de batismo da menina Luzia, que exibo e transcrevo a seguir.

Em 18 do dito mês [dezembro de 1617] batizei Luzia, filha de Sebastião Lobo e de sua mulher Isabel dos Rios, e foi padrinho Manoel dos Rios e madrinha Maria da Cunha a moça, [rasurado: filha solteira de Domingos] mulher de Antônio do Lago – teve óleos

Nesse assento, o pároco teve o cuidado de declarar que a madrinha era “Maria da Cunha a moça”, pois a mãe desta era sua homônima. E observe que ele se equivocou ao registrar inicialmente que a madrinha seria ainda filha solteira de Domingos (Nunes Sardinha), quando já estava casada, há mais de um ano (19.6.1616, informa Rheingantz), com Antônio do Lago (Prego, na obra do mestre). Esses equívocos reiteram a filiação de Maria da Cunha, mas o assento apresenta mais informações úteis. Como se percebe pela semelhança dos sobrenomes – e foi constatado na pesquisa – o padrinho da criança era seu avô. E mais: esse homem foi o segundo marido de Antônia Rodrigues Sardinha, que no processo de canonização do padre José de Anchieta, em 1622, declarou ser filha de Duarte Nunes – novamente ele – e Maria Fernandes.

A partir dessas evidências e de muitas outras que reuni em minha pesquisa por documentos paroquiais, registros de terras e obras de genealogistas e historiadores renomados, pude comprovar que Domingos Nunes Sardinha era filho de Duarte Nunes, que ambos eram cristãos-novos e que suas vidas no Brasil foram cheias de peripécias. As descobertas dessa pesquisa e seus desdobramentos foram publicados na obra Duarte Nunes o cristão-novo e sua descendência no Brasil.


José Araújo é genealogista.