Em os treze dias do mês de agosto [tive hum] escrito do reverendo padre […] da Costa [de] como recebera por palavras de presente com bênçãos na sua ermida de Nossa Senhora do Bom Sucesso, com licença, a Domingos da Cunha, filho de Duarte [rasurado: da Cunha], digo, de Domingos Nunes e de Maria da Cunha sua mulher, e Ana da Costa, filha de Manoel Caldeira, defunto, e de Ana da Costa, sua mulher, precedendo as três admoestações e mais diligências que [tanto] se requer, o qual recebimento fez em vinte e seis dias do mês de julho, estando presentes por testemunhas o capitão Mateus de Moura Fogaça, o capitão Gonçalo Teixeira, [o capitão] João […] e outras pessoas.

O assento matrimonial apresentado não revela um facto interessante sobre a condição de vários dos citados: eles tinham origem cristã-nova. Domingos da Cunha, o noivo, era neto de Duarte Nunes, meu duodecavô materno, que era cristão-novo. A noiva Ana da Costa era filha do cristão-novo Manoel Caldeira. O cristão-velho Mateus de Moura Fogaça, por sua vez, era casado com Úrsula da Costa, irmã da nubente, portanto também filha do cristão-novo Manoel Caldeira. Embora a condição de cristão-novo pudesse trazer impedimentos para ocupação de cargos públicos, para ordenação na Igreja e até ter consequências mais drásticas – um dos netos do capitão Mateus de Moura Fogaça foi condenado à morte pelo Tribunal do Santo Ofício -, os descendentes de Manoel Caldeira tiveram projeção na sociedade da época.

Domingos da Cunha faleceria alguns anos depois do casamento sem deixar descendência, pelo que esse ramo colateral de minha árvore se interrompe no casal. Ana da Costa não morreria viúva, pois se casaria depois com Diogo Fagundes, filho de Sebastião Fagundes Varela e de Maria de Amorim, casal que não parece ter indícios de origens cristãs-novas. Sebastião foi grande proprietário de terras no termo da cidade, pois, no início do século XVII, comprou de Diogo de Amorim, seu sogro, terras que haviam pertencido ao Engenho D’el Rei, fundado por volta de 1570.

Por esse casamento ter ocorrido sem problema aparente, deduzimos que o defeito de sangue de Ana da Costa não tenha despertado suspeitas ou gerado mal-estar. Mas o casal não teve geração e, na falta de herdeiros ascendentes ou descendentes, Diogo declarou em seu testamento que tornava Ana da Costa sua herdeira universal. Trecho desse testamento pode ser lido abaixo na transcrição de seu assento de óbito.

Aos vinte e um dias do mês de abril do ano de mil seiscentos e setenta e seis, faleceu Diogo Fagundes, recebeu os sacramentos, fez testamento e nele dispôs que seu corpo fosse amortalhado no hábito de São Francisco e sepultado no mesmo convento na sua cova que ficou de seus pais. […] Declarou que era natural desta cidade, filho legítimo de Sebastião Fagundes e de Maria de Amorim, já defuntos, e que era casado em face da Igreja com Ana da Costa e que deste matrimônio não houvera filho algum e assim não tinha herdeiro seu descendente nem ascendente. Declarou que, depois de pagas suas dívidas e legados, nomeava e instituía por universal herdeira de seus bens a sua mulher Ana da Costa, com declaração que tenho contratado com a dita minha mulher […]

As terras da família Fagundes Varela ficavam em torno de uma lagoa em cujas margens surgiriam, séculos mais tarde, alguns dos bairros mais nobres da cidade do Rio de Janeiro. Essa lagoa recebeu vários nomes – Piraguá, Camambucaba, Sacopenapã, do Amorim, do Fagundes – , mas o nome pelo qual é hoje conhecida estabeleceu-se no século XVIII e tem relação direta com a genealogia dos Fagundes Varela. Além Diogo Fagundes, Sebastião e sua mulher Maria de Amorim tiveram uma filha chamada Petronilha (1614-1668), que se casou por volta de 1635 com João Fagundes Paris (1605-1682). Uma das netas deste último casal, homônima da avó materna, casou-se com Rodrigo Freitas de Castro (1672-?), que foi o último proprietário das citadas terras e deu seu nome ao corpo de água que elas circundam.

Lagoa de Freitas (ca. 1820) – Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo

José Araújo é genealogista.