A série Origens do Ecoa-UOL promove o resgate “histórico da construção de identidade de pessoas negras” e, por ocasião da Copa do Mundo de Futebol de 2022, lançou um especial com entrevistas de ex-jogadores que disputaram a Copa do Mundo e aceitaram participar de um teste de genealogia genética para explorar sua ancestralidade. Neste texto abordo especificamente a entrevista do capitão Marcos Evangelista de Morais, que os brasileiros conhecem como Cafu, que tem no currículo os feitos notáveis de ter sido o jogador com mais partidas pela seleção (142 jogos), o que mais disputou partidas do mundial (20 jogos) e o único no planeta a jogar três finais seguidas, das quais venceu a de 1994 e a de 2002.
O resultado do teste, realizado pelo laboratório Genera, informa que o DNA autossômico do jogador tem marcadores majoritariamente (60%) africanos, com predominância (40%) de antepassados com origem na Costa da Mina. Costa da Mina, esclareço desde já, não é uma origem étnica. Tampouco indica precisamente de onde vieram os antepassados africanos de Cafu, que certamente foram vítimas do tráfico transatlântico que durou 300 anos e desterrou mais de 12 milhões de pessoas desde a África até as costas das Américas. Como, então, interpretar o resultado do teste do capitão?
Em primeiro lugar, é necessário saber que o tráfico transatlântico teve quatro diferentes rotas desde a costa africana. A rota da Costa da Mina foi apenas uma delas, e seu porto de referência foi o do forte português de São Jorge da Mina, construído no século XV em Gana, no litoral da África Ocidental. Esse forte funcionou como entreposto do tráfico onde os escravizados aguardavam o embarque nos tumbeiros, navios que os levariam para as Américas nas piores condições imagináveis.
Os escravizados que eram embarcados neste porto ficaram conhecidos como minas, o que confere ao termo um sentido mais geográfico que étnico. Neste segundo sentido, o termo englobava grupos étnicos muito distintos como os jejes, os nagôs (ou iorubás) e os haussás. De modo geral, esses povos tinham domínio da extração e fundição de metal, pelo que passaram a alcançar enorme valor no século XVIII por conta do ciclo do ouro na região das Minas Gerais. Inicialmente traficados para o nordeste brasileiro, os minas passaram, portanto, a ser traficados internamente para as regiões de extração mineral.
Essa informação necessária sobre os minas, que não se encontra na matéria do Ecoa, literalmente faz eco com o depoimento de Cafu:
Meus pais são mineiros, mineirinhos de Belo Horizonte e Juiz de Fora, então, por que África? Alguém passou pela África, alguém veio de lá. Mas quem veio de lá? Eu tenho essa curiosidade. Por que Europa também e não América do Sul? Eu quero estudar legal esse resultado.
Embora seja precipitado fazer qualquer interpretação, o facto de o jogador ter família na região onde os minas foram mais valorizados sugere que ou ele descende daqueles escravizados que foram traficados internamente desde o nordeste até as lavras de ouro ou seus antepassados foram traficados diretamente de Gana para o Rio de Janeiro, de onde foram transportados para as regiões auríferas. De alguma forma pudemos responder aqui a pergunta do capitão (“…por que África?). Uma resposta mais detalhada sobre o caminho que seus antepassados percorreram desde África, no entanto, talvez nunca seja conseguida pela dificuldade de obter provas documentais relacionadas ao tráfico.
Os minas eram não apenas notáveis metalúrgicos, mas também excelentes comerciantes. As mulheres minas, por exemplo, já em Salvador e depois nas cidades mineiras e no Rio de Janeiro, tornaram-se escravas de ganho, que viviam da produção e venda de alimentos e da realização de trabalhos domésticos. Com o que acumulavam desse trabalho após o pagamento devido aos seus senhores, elas conseguiam acumular um pecúlio que lhes permitia comprar a própria liberdade e as de seus filhos, mães e irmãs. Os minas de origem haussá eram muçulmanos e ficaram conhecidos como malês. Eles sabiam ler e escrever e rejeitavam a condição de escravizados. Na década de 1830, estiveram envolvidos em inúmeras revoltas escravas na Bahia, tendo a mais conhecida delas, de 1835, ficado conhecida como Revolta dos Malês.
As revoltas escravas deram má fama aos minas, que acabavam sendo vendidos por seus proprietários para fazendeiros do sul fluminense. Aqueles que já haviam sido libertados na Bahia, por sua vez, emigravam para a capital do império – o Rio de Janeiro – e seu estabeleciam na região portuária – Gamboa, Santo Cristo, Saúde e depois até a Cidade Nova. Da Bahia eles traziam sua cultura – música, costumes alimentares e religião – e acabaram por criar o que Heitor dos Prazeres chamou de Pequena África. Foi nessa região onde nasceu o samba.
Conheça a história da Pequena África e do Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança Africana lendo esta obra: A Pequena Grande África no Rio de Janeiro: Guia Turístico – Rio de Janeiro Histórico.
José Araújo é genealogista.