A Genealogia emprega fontes documentais primárias – registros paroquais, testamentos, inventários, registros de terras – ou secundárias – obras genealógicas – para elaboração da história de uma família. Mas nem sempre existem fontes para pesquisar ou, quando existem, nem sempre elas parecem conter os dados necessários para que a história familiar seja elaborada. Mesmo quando os dados parecem insuficientes, no entanto, é possível utilizá-los mediante a elaboração de hipóteses de trabalho. Não é algo trivial, nem sempre se chega ao resultado desejado, mas pode ser a única estratégia válida, como demonstro neste caso.

O caso ocorreu em um ramo bem remoto de minha árvore familiar. Ele diz respeito a minha antepassada Maria da Cunha, filha de João de Bastos e Maria de Oliveira, que estavam entre os primeiros moradores da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. No Banco de Dados da Estrutura Fundiária do Recôncavo da Guanabara Sécs. XVII e XVIII, compilado pelo pesquisador Maurício Abreu, encontra-se o já comentado registro de escritura transcrito abaixo. Ele informa que, em 1588, Maria da Cunha estava prometida em casamento ao cidadão Manoel de Castilho:

Escritura de dote de casamento que fazem João de Basto e sua mulher Maria de Oliveira a Manoel de Castilho para casar com sua filha Maria da Cunha – além de outros bens, doam “em a vargem de Nossa Senhora, a metade das casas em que ele[s] pousava[m], para a parte de Pero da Costa, que é para a parte da Camarara (sic), até entestar com o dito Pero da Costa, e o comprimento do quintal até entestar com o chão de João Lopes [Pinto], com os largos da dita a metade das ditas casas, e assim mais lhe dava[m] a metade do chão que tinha[m] junto do Mosteiro de Jesus, para a parte do dito Mosteiro, e assim mais lhe dava[m] um chão que tinha a dita sua filha em a cabeceira do chão de Aires Fernandes, entre a casa de Pacheco e a ladeira, e assim mais lhe dava[m] a metade de suas terras que tinha[m] em Jorisenogua …..” [Escritura do 1º Ofício].

Mas a história parece ter seguido outro rumo, pois Maria se casaria, por volta de 1590, com o cristão-novo Domingos Nunes Sardinha. Domingos vivia com sua família – pai, cunhado e talvez irmã – em Porto Seguro, Bahia, por volta de 1580, mas, provavelmente por conta de problemas com a Igreja, mudou-se para o Rio de Janeiro na virada do século. Nesta cidade devem ter nascido os quatro filhos conhecidos de Domingos e Maria: Maria da Cunha, minha antepassada direta; Duarte Nunes da Cunha; Antônia Tavares de Oliveira e Domingos da Cunha. Mas por que Maria não se casou com o homem a quem estava prometida e acabou se casando com um homem que trazia uma mácula de origem que poderia causar problemas diversos tanto para a família deles quanto para seus futuros filhos?

Uma mente criativa poderia pensar em diversas explicações: amor à primeira vista, traição, separação logo após o primeiro casamento. Como não existem provas documentais concretas para sustentá-las, mas existem algumas evidências esparsas que indicam outra possibilidade, propus a hipótese que passo a descrever. As tais evidências encontram-se nas diligências de habilitação para a Ordem de Cristo – ordem religiosa e militar fundada no século XIV – de um tetraneto de João de Basto e Maria de Oliveira e trineto de Ana da Cunha, irmã de minha antepassada Maria da Cunha. As diligências envolveram a tomada de depoimentos de vários moradores da cidade do Rio de Janeiro nos anos de 1735 e 1738. O documento digitalizado encontra-se no banco de dados do Arquivo da Torre do Tombo.

Antônio Pinto Homem, o habilitante para quem foram feitas as diligências, era filho de Antônio Pinto Homem e de Ana de Sampaio, neto materno de Helena de Oliveira, bisneto materno de Bento de Oliveira e Ana de Sampaio e por Bento trineto de Ana da Cunha e do licenciado João Lopes Pinto. Essa breve descrição genealógica ajudará a entender o que se declara no processo de habilitação. Vamos, então, analisar alguns dos depoimentos que constam no processo em que se informa da origem cristã-nova do habilitando e se descrevem alguns problemas que seus parentes enfrentaram na sociedade local por conta dessa condição.

Às páginas 25 e 26 do documento encontra-se o depoimento do escrivão Jacinto Pereira de Castro, de que extraí o trecho abaixo:

[…] declarou que sabe que sendo o avô do justificante religioso leigo [nota: depois de viúvo, foi para o convento de Santo Antônio, onde adotou o nome de frei Matias segundo consta de outro depoimento], como já disse, quis este meter as suas quatro filhas em que entrava a mãe do habilitante terceiras na Venerável Ordem de São Francisco lhas não quiseram aceitar pelo que respeitava a defunta sua mãe Helena de Oliveira, avó do justificante, por esta e a sua descendência padecer e ter a fama de cristãos-novos, e a mesma tem toda essa descendência da dita Helena de Oliveira por quanto querendo e pretendendo uma prima irmã do habilitante, filha de sua tia e irmã de sua mãe, que seu marido entrasse por irmão da Misericórdia desta cidade, e tirando-se-lhe as inquisições, não foi admitido, por razão de a dita sua mulher e o mesmo padece e os mais tios do dito habilitante e irmãs de sua mãe por cuja razão não são os maridos irmãos da Santa Casa, nem elas da Ordem Terceira de São Francisco e haver geralmente esta fama e ser muito antiga e não disse mais coisa alguma. […]

Do segundo depoimento, à página 39, pelo mestre de campo Manoel Pimenta Telo, extraí trecho seguinte:

[…] disse que sabe que o habilitante é geralmente infamado de cristão-novo por sua mãe Ana de Sampaio, que sempre teve a mesma fama por sua mãe Helena de Oliveira, avó do habilitante, qual ele testemunha não conheceu e somente esta fama que já tem declarado a tem as mesmas tias do habilitante, irmãs de sua mãe e a razão que a tem para saber isto é pela razão de há tantos anos serem vizinhos e conversarem muitas vezes tanto na cidade como na fazenda sobre esta matéria com várias pessoas dignas de crédito e sem paixão […]

Às páginas 44 e 45 lemos o seguinte trecho do depoimento do comerciante Paulo Rodrigues Monção:

[…] tem ouido dizer algumas pessoas dignas de crédito e antigas que o habilitante era infamado de cristão-novo pela parte de sua mãe Ana de Sampaio e a quem ouviu fora o capitão-mor Francisco Gomes Ribeiro e ao reverendo padre Brás Ferreira Mendes, estes moradores nesta cidade há mais de sessenta anos. E ao Doutor Luiz Forte Bustamante e Sá, que nesta cidade serviu de juiz de fora e de presente é morador nas Minas na comarca de Rio das Mortes e fazendo o marido da tia do habilitante, digo, prima-irmã do habilitante uma petição para ser irmão da Misericórdia o não aceitou o provedor que então era o capitão-mor Francisco Gomes Ribeiro pelo fundamento de sua mulher, prima-irmã do habilitante, ter fama de cristã-nova […]

O pesquisador José Gonçalves Salvador (1976, 35) afirma sem comprovação que a fama de cristã-novice do habilitante viria do capitão Antônio de Sampaio, avô de sua bisavó Ana de Sampaio. A maioria dos depoentes declara não saber de onde viria a fama da família, mas houve quem afirmasse – também sem comprovação – que ela viria do bisavô materno do habilitante, Bento de Oliveira, filho de João Lopes Pinto e Ana da Cunha, esta irmã de Maria da Cunha, portanto cunhada do cristão-novo Domingos Nunes Sardinha.

Como que a ressaltar fama tão antiga da família, o irmão inteiro do habilitante se casaria com uma filha natural do cristão-novo lisboeta Manoel do Vale da Silveira, em cuja descendência houve vários processados pelo Santo Ofício no século XVIII. A revelação desse enlace se encontra no já citado depoimento de Manoel Pimenta Telo:

[…] e agora de próximo se casou um irmão legítimo do habilitante por nome Manoel Pinto Homem com uma parda forra filha de Manoel do Vale, o qual já foi penitenciado pelo Santo Ofício, cuja ação deu motivo para se dizer geralmente que ele também era cristão-novo e publicamente o diziam os parentes da tal parda da parte do pai e da mãe nas disputas que tiveram sobre tal casamento e os mais que tiveram notícia do tal casamento […]

Em hipótese, penso que poderia haver outras explicações para tão antiga fama da família de Antônio Pinto Homem. E ela poderia sim estar em seu ramo materno, por via de Bento de Oliveira, como afirmou o comerciante Jacinto Pereira de Castro em depoimento que prestou em 1738, lido à página 103:

[…] lhe vem ao […] justificante a má fama por parte de seu bisavô Bento de Oliveira […]

Bento era filho de João Lopes Pinto, de quem o mestre Rheingantz (Tomo II, p. 442) informa:

JOÃO LOPES PINTO, licenciado. n. por volta de 1556 e fal. morador no Rio de Janeiro casado por volta de 1586 com Ana de Oliveira n. por volta de 1566 e fal. […]

João Lopes Pinto era um homem que se destacava na sociedade local, pois fora licenciado, provavelmente em Coimbra, e acredita-se que fosse natural do Reino, pois o mestre declara apenas que ele era “morador no Rio de Janeiro“. Nada mais se sabe a seu respeito, mas havia em Santos um cidadão chamado Francisco Lopes Pinto que, em 1618, apresentou provas para requerer que seu nome fosse retirado do livro das fintas que eram cobradas dos cristãos-novos, no que foi atendido por ordem do ouvidor Gonçalo Correia de Sá, conforme registro do escrivão transcrito a seguir de José Gonçalves Salvador (1976, p. 61).

borrei e risquei a Francisco Lopes Pinto do rol donde está assente a gente da nação a folhas cinte e uma na volta della … Santos aos sete dias do mez de agosto de mil seiscentos e dezoito annos.

Não se sabe se João e Francisco Lopes Pinto eram aparentados, mas a semelhança dos sobrenomes é sugestiva e é tudo o que se tem para esse ramo. Ainda que o parentesco fosse real e que fosse a motivação para os depoimentos prestados, ele não explicaria o suposto malogro do casamento de Maria da Cunha com Manoel de Castilho.

A fama de cristã-novice poderia ainda vir do ramo materno de Bento de Oliveira, cujos avós eram os pais de Maria da Cunha. Para sustentar esse argumento, cito outro depoimento do processo de Antônio Pinto Homem, prestado em 9 de dezembro de 1738, por Francisco de Faria Pinto Albernaz, capitão de ordenança em Cabo Frio, encontrado à página 111:

Trecho do depoimento de Francisco de Faria Pinto Albernaz

[…] diz que o justificante é infamado / de cristão-novo entre muitas pessoas que tem / notícia de sua geração, e que essa fama lhe vem / por parte de sua avó materna Helena de Oli / veira e seus antecedentes dos apelidos [Colunas] [nota: seria Cunhas?]. / E que ele testemunha se certificou mais da dita / fama querendo casar uma sua cunhada com um / primo-irmão do justificante, comandando sua / sogra a ele testemunha, e a seu cunhado João / Machado que se informassem da limpeza de san / gue do dito pretendente, eles o fizeram tomando in / formação de pessoas antigas e de crédito e acha / ram a mesma fama que acima fica dita, por / cuja causa de não fez o casamento em vida de sua / sogra, mas por morte desta sempre vieram a casar […]

Segundo este último depoimento, um casamento não se realizou de imediato com primo de primeiro grau de Antônio Pinto Homem após inquirições sobre a limpeza de sangue de sua família revelar mácula pelo ramo de sua bisavó Helena de Oliveira. Interessante destacar que o depoente Francisco Albernaz informa de que ramo familiar de Helena poderia vir a mácula: o de sobrenome que poderia ser lido como Colunas. Mas esse sobrenome não existe na família dela em linha direta e sim em ramo indireto, pois sua bisavó Ana Rodrigues (filha de Jordão Homem da Costa e Apolônia Rodrigues) era irmã de Francisca da Costa Homem, de cujo casamento com Aleixo Manoel Albernaz nasceu Maria Albernaz. Esta Maria, enfim, casou-se com Diogo Mendes Coluna, natural do reino de Castela, mas não se sabe sobre ele ser infamado de cristã-novice.

Seria, portanto, improvável que Helena fosse infamada por conta desse não parentesco tão longínquo. Mais provável seria que a fama lhe viesse do sobrenome Cunha por razão ainda desconhecida. Esta poderia, então, ter sido a razão por que Manoel de Castilho não se casou com Maria da Cunha: a descoberta de que sua noiva era cristã-nova por seus ascendentes de sobrenome Cunha. É a hipótese com que sigo nas pesquisas desse ramo familiar.


José Araújo é genealogista.


José Araújo

Genealogista

1 comentário

Condenadas – Genealogia Prática · 8 de junho de 2023 às 10:32

[…] já publiquei aqui em outro texto um trecho das diligências de habilitação para a Ordem de Cristo de Antônio Pinto Homem, cujo […]

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