Aos trinta e um de março de mil seiscentos e setenta e três faleceu Gaspar Cordeiro. Recebeu os sacramentos [e] fez seu testamento e nele pedia à santa Irmandade da Misericórdia, [de] que fora muitos anos irmão, que o enterrassem pelo amor de Deus […] a venerável Ordem Terceira do Carmo da qual era terceiro e assim foi sepultado na dita Igreja do Carmo, amortalhado no mesmo hábito. Acompanharam seu corpo o seu pároco com seus clérigos e os religiosos do Carmo. Nomeou por seus testamenteiros a seu filho Tomás Cordeiro e Antão Cosme, aos quais pedia fizessem bem por sua alma. // Declarou que tinha em sua casa uma negra por nome Mariana a qual era forra e por tal a trouxera da Bahia, da qual [tivera] uma filha à qual deixava por esmola o enxoval de [Crisma?] e roupa e tudo mais que se achar. // Declarou mais que tinha outra filha mulata por nome Marcelina, a qual é livre e forra por carta que lhe dera. // Declarou que dois mulatos que ficaram forros um forrara por ser seu neto e outro que o forrou […] de serviços que a seu pai […] e não continha mais quanto ao pio. De que fiz este assento.

Gaspar Cordeiro é um personagem curioso. Se acompanharmos as pistas que dele encontramos na obra de Frei Jaboatão e nos registros paroquiais existentes, tudo indica que ele tenha nascido na Bahia e falecido no Rio de Janeiro. Segundo a primeira fonte, ele poderia ser filho da baiana Branca de Peralta, descendente do cirurgião português e cristão-novo Mestre Afonso Mendes e que foi a segunda mulher do português Antão Delgado Aires. No inventário de seu marido, Branca declarou ter tido com ele sete filhos, aparentemente nesta ordem e com estes nomes: Jerônimo Aires, Ana, Maria Cordeiro, Gaspar Cordeiro, Francisco Cordeiro, Antão Delgado e Isabel.

Entre os registros paroquiais encontramos evidências esparsas que dizem respeito a um Gaspar Cordeiro que teve alguma ligação com a Bahia. No registro de óbito transcrito acima, encontrado em livro da antiga Sé do Rio de Janeiro, um Gaspar Cordeiro declarou ter tido uma filha com uma ex-escravizada chamada Mariana que trouxera já liberta da Bahia, pelo que temos algum indício de que esse homem pode ter nascido naquela província e migrado para a do Rio de Janeiro quando era já adulto. Nesta província, ele faleceu, declarando ter um filho que deixava por testamenteiro, nada dizendo sobre seu estado civil antes de falecer, tampouco citando o nome da mulher com quem gerou esse filho. Mas é curioso que tenha citado o nome da forra Mariana e da filha que tivera com ela.

Existiu na cidade do Rio de Janeiro um homem chamado Antônio de Peralta que se casou, em 16 de janeiro de 1674, na mesma Sé da cidade, com Paula Barbosa. É o assento matrimonial desse casal que se vê abaixo e se lê em transcrição a seguir.

Matrimônio de Antônio de Peralta e Paula Barbosa

Aos dezesseis dias do mês de janeiro de mil e seiscentos e setenta e quatro, às cinco horas da tarde, em a igreja [da in]vocação de São Diogo, por comissão do senhor administrador Francisco da Silveira Dias, recebi por palavras de presente, com bênçãos, Antônio de Peralta, filho de Gaspar Cordeiro e de Maria de Peralta, com Paula Barbosa, filha do capitão Manoel Barbosa Simões e de Maria de Araújo, todos naturais desta cidade. Assistiram por testemunhas Tomás Cordeiro, e o capitão Francisco Monteiro Mendes, e dona Isabel e Maria de Araújo. De que fiz este termo no próprio dia e assinei era acima.

Segundo o assento matrimonial, o noivo, que era filho de um Gaspar Cordeiro, teve por testemunha de seu casamento um homem chamado Tomás Cordeiro, que poderia ser um homônimo do filho do Gaspar Cordeiro com quem iniciamos este texto, mas poderia ser a mesma pessoa – o que tornaria Antônio de Peralta irmão de Tomás Cordeiro. Mas o assento matrimonial informa que todas as pessoas citadas seriam naturais do Rio de Janeiro, o que pode ser um entrave para a interpretação de que se trata de uma mesma família.

Para nossa sorte, o assento de óbito de Antônio de Peralta informa algo totalmente diverso e mais interessante para nossos propósitos. É desse assento que transcrevo o trecho abaixo.

Aos vinte e um dias do mês de maio de mil e setecentos e dois, faleceu Antônio de Peralta. Recebeu os santos sacramentos, fez seu testamento, nomeou por seus testamenteiros sua mulher Paula Barbosa e a seu cunhado o licenciado padre Manoel Barbosa […] Declarou que era natural da cidade da Bahia, filho legítimo de Gaspar Cordeiro e de Maria de Peralta, já defuntos, e que era casado com Paula Barbosa, da qual não teve filhos […]

Creio que devamos ter mais confiança na declaração do moribundo, que declarou ser natural da “cidade da Bahia”, talvez mais corretamente da cidade de Salvador, na Bahia. A declaração de sua filiação em Gaspar Cordeiro e Maria de Peralta sugere que podemos ter finalmente conhecido a identidade da mulher com quem Gaspar Cordeiro se casou, talvez a mãe de Antônio e Tomás. Não deixa de ser curioso, no entanto, que apenas o segundo filho tenha sido citado no óbito de Gaspar. E mais: haveria alguma razão para o nome de Maria de Peralta ter sido omitido no mesmo assento de óbito?

Lembro aqui um texto anterior em que menciono um processo de genere de um provável descendente de Gaspar Cordeiro chamado Gaspar de Peralta Ramos em que houve dois testemunhos de que o candidato não poderia almejar promoção às ordens menores por ter uma mácula de sangue por descender de um Gaspar Cordeiro que se casou com a filha de uma viúva de Angola chamada Maria. Esta última padecia de fama de cristã-nova e suspeita-se que tenha sido casada com um homem da família Bravo, que era de reconhecida origem cristã-nova. Neste momento, é apenas uma hipótese a ser investigada.


José Araújo é genealogista.


José Araújo

Genealogista

2 comentários

Fugitivos – Genealogia Prática · 14 de junho de 2024 às 15:11

[…] Cordeiro e Antão Cosme”, pelo que sabemos que tinha ao menos um filho legítimo – e teve ao menos mais um chamado Antônio. Mas Gaspar teve também duas filhas afrodescendentes, uma delas filha de uma ex-escravizada que […]

Revisita – Genealogia Prática · 19 de junho de 2024 às 08:18

[…] ramo é o núcleo familiar do cristão-novo Gaspar Cordeiro, filho do português Antão Delgado Aires, supostamente cristão-velho, e da cristã-nova baiana […]

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