A identificação das origens dos antepassados que foram escravizados na África é talvez o maior desafio para a genealogia de famílias afrodescendentes no Brasil, pois, além de raramente haver registros documentais que permitam traçar essas origens, uma pessoa afrodescendente pode ter antepassados de diferentes etnias africanas. Os testes de genealogia genética – as ferramentas mais avançadas disponíveis – até parecem sinalizar a solução para esse desafio, mas eles ainda são pouco precisos e só nos resta o incansável trabalho de analisar periodicamente as correspondências (matches) com outros clientes sugeridas pelas plataformas que vendem esses testes.

Testes realizados em minha família materna permitem afirmar que temos ao menos duas antepassadas afrodescendentes: minhas bisavós Theodora (haplogrupo L1c1b) e Argemira (haplogrupo L1c2a3b). Quando os dados brutos desses testes foram inseridos em plataformas analíticas diferentes, sugeriram composições étnicas distintas, sendo que um deles identificou para ambas as variantes do haplogrupo L1c de minhas bisavós uma origem no povo Ticar. Relatos familiares obtidos com um prima materna falam de uma possível origem angolana. Talvez nada disso esteja totalmente correto, mas talvez haja nisso um pouco da verdade, pois, se minhas bisavós descendiam de escravizados que já estavam no Brasil há algum tempo, certamente tinham em seus DNAs uma composição de diversas etnias africanas. Só resta esperar que um dia esses testes se tornem mais precisos.

Comparação de meu teste autossômico com o de minha prima

Enquanto esse momento não chega, pratico a observação periódica das tais correspondências (matches) de DNA sugeridos pelas plataformas. Gosto de usar a ferramenta que a plataforma MyHeritage oferece, pois ela é bem intuitiva e permite filtrar os matches a partir de suas origens étnicas e geográficas, total e maior segmento de DNA compartilhado em centimorgans (cM), entre outros fatores. Por meio dela pude confirmar parentesco com mais de uma dezena de outros clientes testados. E foi no hábito de periodicamente investigar esses matches que notei a correspondência genética com afrodescendentes de nacionalidades americana, francesa, holandesa e sul-africana, vários deles com mais de 10cM no maior segmento compartilhado, o que é um bom indicador de termos um ascendente em comum.

Nos poucos que me dei ao trabalho de olhar – pois nem todos tinham árvores bem documentadas – era frequente uma origem familiar em Cabo Verde, o arquipélago na costa africana que hoje é uma república, mas já foi possessão portuguesa e porto de embarque de escravizados para as Américas. Embora uma origem comum cabo-verdiana não seja indicativa de uma origem étnica específica – afinal a ilha não era habitada antes do século XV e depois serviu como porto de recepção e embarque de escravizados de etnias diferentes -, existe uma aproximação geográfica com a região da Costa da Mina e talvez com grupos étnicos específicos como os iorubás, hauçás e até aos ticares mais ao sul.

A coincidência com esses matches estrangeiros de origem cabo-verdiana e outros, brasileiros, de fenótipo e sobrenomes europeus não ibéricos e origem mineira faz pensar em uma migração interna no Brasil após a chegada da África pelas rotas do tráfico e, claro, em miscigenação. Suponho que um de meus antepassados pode ter sido trazido desde Cabo Verde para o trabalho nas lavouras de cana ou fumo da Bahia, onde foram desembarcados muitos escravizados de origem mina. De lá, ele ou um seu descendente foi transferido para a região de mineração quando este ciclo econômico se tornou atrativo para a coroa portuguesa. Mas nada impede que esse antepassado tenha sido traficado diretamente para o trabalho na região de Minas Gerais. Das minas, com a decadência do ciclo do ouro, outros descendentes desse africano traficado desde Cabo Verde podem ter ido parar nas lavouras de café do sul fluminense, onde estão as origens documentadas mais recentes de minha família materna.


José Araújo é genealogista.


José Araújo

Genealogista