O censo de 2022 revelou que 1,7 milhão de indígenas vivem no Brasil, o que corresponde a 0,83% da população total do país. Não se sabe exatamente quantos indígenas viviam por aqui em 1500, mas as estimativas variam de três a oito milhões. A Amazônia, por exemplo, que por muito tempo foi considerada uma região praticamente desabitada, era, ao contrário, densamente povoada, como atestam relatos dos primeiros europeus que subiram seus rios. A drástica redução das populações indígenas foi o resultado de séculos de perseguições, extermínios e epidemias que ceifaram incontáveis vidas após o contato com o europeu.
As etnias que não foram extintas acabaram fugindo em direção ao interior do continente ou, como ocorreu mais geralmente, sendo reunidas em aldeamentos criados e administrados pelas ordens religiosas – principalmente a dos jesuítas – em nome da coroa portuguesa. Esses aldeamentos acabaram dando origem a freguesias que hoje são cidades conhecidas, como São Lourenço (hoje Niterói), São Francisco Xavier de Itinga (hoje Itaguaí), Nossa Senhora da Guia de Mangaratiba e São Pedro da Aldeia, para citar apenas aqueles localizados no atual estado do Rio de Janeiro. Nos aldeamentos os indígenas eram até certo ponto protegidos da sanha exterminadora dos governadores-gerais e da pressão escravista dos colonos, mas tinham sua cultura transformada e sua mão de obra explorada pelos religiosos, que também lhes incutiam a fé cristã.
Os aldeamentos cresciam à medida que novos grupos eram voluntariamente descidos ou trazidos do sertão – o interior do continente. Nesse processo, suas culturas originais eram diluídas em favor de uma cultura nova. Para que a comunicação fosse possível, era-lhes imposto o conhecimento da língua tupi, que havia sido codificada pelo jesuíta José de Anchieta. Tornado uma verdadeira língua franca, o tupi acabou municiando os aldeados com uma preciosa ferramenta para reivindicarem seus direitos às autoridades coloniais. Dessa forma, esses indígenas aldeados puderam conquistar direitos, terras e até cargos na administração, apesar do risco de morrer nas epidemias que assolavam os aldeamentos, dos desmandos e violências cometidas pelas autoridades e pelos colonos brancos. Embora seja perigoso generalizar, talvez se possa dizer que, não fossem os aldeamentos, o percentual de indígenas no censo de 2022 poderia ser ainda menor.
Mas estávamos até então falando de pessoas que ainda hoje se identificam no censo como indígenas, o que de forma alguma leva em conta o percentual bem mais significativo de descendentes desses indígenas na população atual e que podem ignorar sua ancestralidade. Por muito tempo o conhecimento dessa ascendência indígena ficou restrito a relatos familiares pouco confiáveis – “minha bisavó era indígena e foi pega no laço” – e ao conhecimento mais objetivo trazido por obras como a Genealogia Paulistana de Silva Leme, em que se apresentam ao menos as gerações descendentes da indígena Bartira e de seu companheiro português João Ramalho.
Nas últimas décadas do século XX, outra ferramenta se tornou relevante para a revelação de insuspeitadas ascendências indígenas: os testes de DNA mitocondrial. Esses testes permitiram mesmo revisar os títulos da citada Genealogia Paulistana e revelar que algumas das matronas a quem o mestre Silva Leme atribuiu uma origem europeia eram, na verdade, autênticas nativas da terra brasilis. O fato é que se desconhece o real percentual de descendentes dessas mulheres e de incontáveis outras que não tiveram suas existências descritas por genealogistas como Silva Leme.
Mas talvez possamos começar a ter uma ideia dessa descendência a partir da divulgação de dados de pesquisas como a DNA do Brasil, segundo a qual a ancestralidade materna do brasileiro é proporcionalmente distribuída entre as matrizes europeia, africana e indígena – um terço para cada. Quem não participou dessa pesquisa pode ao menos adquirir um teste de DNA desses que se vendem ao consumidor final e observar se no resultado do DNA mitocondrial (mtDNA) se indica um haplogrupo como A, B, C, D ou X, indicativos de que uma das antepassadas na linha matrilinear (mãe, avó, bisavó, trisavó…) era indígena.
Talvez não se consiga descobrir quem foi essa antepassada indígena, mas vale a pena tentar e, se for possível documentar sua vida, recomendo dar conhecimento dela de alguma forma – como blogue, livro, artigo ou comunicação familiar. Retirar essas mulheres do esquecimento é algo que deve ser feito já como forma de preservar a memória de suas existências e de valorizar nossas origens indígenas.
José Araújo é genealogista.