Um desafio para todo genealogista que decide ir além da mera análise de documentos é tentar reconstruir a vida das pessoas cujas histórias esses documentos registram de modo fragmentado. Em casos de pessoas para as quais se encontram apenas registros dos eventos vitais como nascimento, casamento e óbito, resta a enganadora aparência de que elas, nos intervalos entre esses eventos, não sofreram, não amaram, não desejaram. A busca dessas vivências muito humanas é, quase sempre, um exercício de imaginação, e por isso um exercício arriscado, que alguns genealogistas veem com muitas reservas.
Mas esse não é meu caso. E é por desejar acrescentar uma camada extra ao resultado de minhas pesquisas que vou aqui apresentar um exercício imaginativo sobre dois momentos especiais da vida do carioca João, que nasceu em junho de 1621 em um círculo de pessoas especiais. É o registro de batismo dele que exibo e transcrevo a seguir.
Em 29 do dito mês de junho batizei a João, filho de Antônio de Mariz e de Paula da Cunha, sua mulher. Foi padrinho Gregório Mendes e madrinha Antônia Rodrigues, mulher de Pedro Peixoto Castelão. Teve óleos. Os […] vieram de [Lisboa]. E batizou o coadjutor Francisco Gomes da Rocha
A família de João poderia ser considerada especial porque estava entre os primeiros moradores da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro e também porque havia convivido com José de Anchieta (1534-1597), jesuíta que teve grande atuação na colônia naqueles tempos. É justamente por causa dessa convivência que temos mais informações sobre a infância de João, pois seu avô materno Lourenço prestou depoimento no processo de canonização do religioso. É a transcrição desse depoimento que lemos a seguir.
30 – Lourenço de Sampaio (ouvido a 30 de abril de 1622), lavrador, natural do Rio de Janeiro, com cerca de 50 anos de idade, filho de Antônio de Sampaio e de Maria Coelho. Conheceu ao Padre Anchieta, assim nesta cidade como na capitania de São Vicente e falou muitas vezes com ele. Ouviu de sua sogra, Maria de Oliveira, que indo o dito padre para Magé, termo desta cidade, em companhia de seu sogro João de Basto e de Aires Fernandes, já defuntos, e querendo lá o padre dizer missa, lhe pedira o meu sogro encomendasse a Nosso Senhor a Maria de Oliveira, que andava para parir. Respondeu-lhe o padre que não era necessário, que já parira. Contou um caso de milagre com a utilização de uma relíquia do Padre José. Finalizou com o caso de seu netinho, de 8 meses, filho de Antônio de Mariz e de sua filha Paula da Cunha, que estando dois dias e duas noites sem mamar, nem levar coisa alguma, com umas febres. Colocada a relíquia no seu pescoço, logo se lhe aplacou a febre e começou a mamar e se achou bem.
Pelo que se deduz do relato de Lourenço de Sampaio, consoante a crença da época, o pequeno João teria sido curado da febre e da inapetência por um dos vários milagres de Anchieta. Não se sabe que repercussão esse milagre teve na vida do jovem João de Mariz, mas a suposição é que pode ter tido algum, visto que, anos mais tarde, ele também se tornaria jesuíta e chegaria a “reitor do colégio de S. Paulo”, como informa Silva Leme em sua Genealogia Paulistana. Talvez, de alguma forma, crescer sob o conhecimento de que sua via havia sido salva por um milagre do padre tenha influenciado sua escolha – ou a de seus pais – pela vida religiosa.
A título de curiosidade, padre João de Mariz era neto de Francisca da Cunha, irmã de Maria da Cunha, que foi casada com o cristão-novo Domingos Nunes Sardinha. Antônia Rodrigues (de Azevedo), madrinha de batismo de João, era neta de Antônia Rodrigues Sardinha, irmã do mesmo Domingos Nunes Sardinha e primeira mulher do também cristão-novo Rui Dias Bravo. Considerando a quantidade de pessoas de nação nessa família, seria interessante encontrar o processo de genere et moribus do padre João de Mariz.
José Araújo é genealogista.