A tradição (Silva Leme, Genealogia Paulistana) informa que Manoel da Luz Escórcio Drummond era natural da Ilha da Madeira e que de lá veio com “sua mulher, três filhas e um filho” para o Brasil, estabelecendo-se inicialmente em São Vicente, onde enviuvou, casou-se novamente e de lá saiu para o Rio de Janeiro com a filha Maria Escórcia e o genro João de Sousa Pereira, que passou à posteridade com a alcunha de o Botafogo. Silva Leme não menciona outros filhos de Manoel da Luz além de Maria e tampouco informa o nome de suas mulheres. Carlos Rheingantz, autor de uma obra fundamental sobre a genealogia fluminense, documentou apenas parte da descendência de Maria Escórcia e João Pereira de Sousa, sem mais detalhar o ramo familiar de Manoel da Luz. E assim esse personagem fundou um dos troncos mal documentados das genealogias paulista e fluminense.

Mapa de São Vicente

Felizmente, graças aos depoimentos prestados no processo de canonização do padre José de Anchieta, temos conhecimento de pessoas que com ele conviveram em São Vicente e no Rio de Janeiro e de suas genealogias. Entre outubro de 1620 e novembro de 1621, duas pessoas que se diziam filhas de um Manoel da Luz depuseram no Rio de Janeiro sobre seu conhecimento a respeito do padre. A primeira pessoa se identificou como Maria Escórcia, disse ser natural de São Vicente, ser filha de Bárbara Rodrigues e ter 49 anos de idade. A segunda pessoa a depor se identificou como Inácio da Luz, disse também ser natural de São Vicente, ser filho de Maria da Costa e ter 58 anos de idade. Como foram depoimentos supostamente prestados em primeira mão, imaginamos que tenham alguma veracidade, ainda que contenham imprecisões. Sendo assim, talvez tenhamos por meio deles esclarecido a identidade das duas mulheres de Manoel da Luz: Maria da Costa (ou de Brito, como querem alguns) e Bárbara Rodrigues. Visto que os depoentes Inácio e Maria declararam ter nascido em São Vicente, eles não estavam entre os quatro filhos que supostamente vieram da Madeira com Manoel e sua primeira mulher. Considerando ainda que eles declaram ter mães diferentes, ainda restaria descobrir quem era a mãe de quem. Prometo retomar essa discussão adiante. Por ora, vamos tentar descobrir mais sobre Maria Escórcia e Inácio da Luz.

Sobre Maria Escórcia (ou Escórcio), os genealogistas do passado informam ter ela sido casada com João Pereira de Sousa em Santos ou São Vicente, o que se confirma no depoimento de Inácio da Luz em que ele declara que seu “cunhado, João de Sousa Pereira (sic), casado com sua irmã Maria Escórcia, tendo ido para o sertão, deixou sua mulher na capitania de São Vicente.” João Pereira de Sousa era português e teria chegado ao Brasil pouco antes da luta contra os franceses que haviam ocupado a Baía da Guanabara, luta esta que levou à fundação da cidade do Rio de Janeiro em março de 1565. Ele deveria ser já um homem formado, portanto supomos que tenha nascido perto de 1540. Acredita-se que logo após o casamento Maria e João tenham se mudado de São Vicente para a cidade recém-fundada, onde tiveram seus filhos – Andresa (1580), Pedro (1584), João (1586), Jerônimo (entre 1587 e 1597), Helena (1588), Maria (entre 1589 e 1595), Úrsula (1596) e Ana (1600) – e onde João recebeu sesmarias perto de 1590. As datas de nascimento dos filhos de Maria Escórcia são estimadas a partir das de nascimento de seus respectivos primogênitos e sugerem que ela e João tenham se casado perto de 1580. Considerando que Maria declarou ter 49 anos em outubro de 1620, o que resultaria em ter nascido em 1571, mas não poderia ter uma filha aos nove anos em 1580, seu nascimento provavelmente ocorreu entre 1563 e 1565, bem perto da data de fundação da cidade onde ela iria morar com o marido. Maria e Inácio eram já falecidos em 1627, conforme atesta o o notário Constantino Rebelo, que declarou que “as seguintes testemunhas que haviam deposto em 1620 haviam morrido antes deste novo processo de 1627: […] Maria Escórcia, […] Inácio da Luz”.

Inácio da Luz declarou ter 58 anos de idade em novembro de 1621, quando depôs no processo anchietano. Nesse depoimento, ele narra um caso que teria ocorrido quando tinha “de 13 para 14 anos”, em um dia 5 de agosto, no qual o padre jesuíta teve uma visão de que “se perdera o Reino de Portugal, porque se havia perdido El-Rei Dom Sebastião em África”. Como o desaparecimento do jovem rei ocorreu em 4 de agosto de 1578, deduzimos que Inácio deve mesmo ter nascido em 1563, conforme idade declarada em seu depoimento. Sendo ele filho de Maria da Costa (ou de Brito), supomos que esse fosse o nome da primeira mulher de seu pai Manoel Escórcio Drummond. Existe uma referência na obra de Carlos Rheingantz (Vol. II, p. 462), a um Inácio da Luz que supostamente nasceu em 1569 e se casou com Maria da Costa, mulher falecida na roça em 6 de agosto de 1657. Talvez seja um homônimo do depoente no processo anchietano, mas a proximidade de datas (1569 segundo Rheingantz ou 1563 segundo o depoimento) sugere que possam ser a mesma pessoa. Do casamento de Inácio com Maria da Costa nasceu Bárbara da Luz, que se casou com Jerônimo Luiz Teixeira, em 6 de maio de 1620, tendo entre as testemunhas de seu casamento Heliodoro Ebanos, marido de Maria de Sousa, e Jerônimo de Sousa, cunhado dele. Jerônimo Teixeira, por sua vez, foi padrinho de batismo de Maria, neta da mesma Maria Escórcia por seu filho Pedro de Sousa. Bárbara e Jerônimo tiveram quatro filhos, todos batizados na Sé do Rio de Janeiro: Apolônia, que teve como madrinha Maria de Sousa, mulher do citado Heliodoro Ebanos; uma criança de sexo e nome não identificáveis pelas condições de conservação do livro e que teve por madrinha uma mulher chamada Inês da Luz; e uma menina de nome Maria, que teve por madrinha “Inês da Luz, mulher de Baltazar de Azevedo”, que pode ser a mesma anterior.

Existiu no Rio de Janeiro uma mulher chamada Inês da Luz que deve ter nascido perto de 1580 e que faleceu na cidade em 6 de junho de 1646, quando era já viúva de Baltazar de Azevedo, falecido em 28 de abril do mesmo ano – em seu testamento, Baltazar declarou como testamenteiros sua mulher e Jerônimo Luiz Teixeira, marido de Bárbara, filha de Inácio da Luz. Sabemos que esse casal teve ao menos um filho, que quando adulto era conhecido como Manoel da Luz. Se considerarmos o antigo costume de dar aos filhos homens o nome do avô paterno ou materno, este Manoel poderia ser neto de Manoel da Luz Escórcio Drummond. Manoel da Luz, o neto, casou-se com Bárbara da Fonseca e com ela teve Inês da Luz, que recebeu o nome da avó paterna. Inês, a neta, foi casada com Tomás Cordeiro de Peralta, meu decavô, que foi vereador da cidade do Rio de Janeiro. Manoel da Luz (neto) e sua mulher Bárbara da Fonseca tiveram, além de Inês, Inácio (1635), Isabel (1639) – que teve por madrinha a já citada Bárbara da Luz, filha de Inácio da Luz e mulher de Jerônimo Luiz Teixeira – e Ana (1644).

Parte dos padrões de nomeação e apadrinhamento, que sugerem parentesco entre as pessoas citadas, é exibida no gráfico abaixo:

Padrões de Nomeação e Apadrinhamento

Também na cidade do Rio de Janeiro existiu um cidadão de nome Baltazar de Azevedo Escórcio de quem nos dá conhecimento o mestre Carlos Rheingantz (Vol. II, p. 221) sem, no entanto, informar de sua filiação. Por processo matrimonial disponível na Cúria Metropolitana e indexado pelo confrade Attila Augusto Cruz Machado, sabemos que esse homem deve ter se casado em 1646 com Felipa Cardoso da Costa, o que nos permite supor que ele tenha nascido perto de 1626. Felipa faleceu em 9 de julho do ano seguinte sem geração, e Baltazar casou-se em segundas núpcias com Mariana de Peralta, com quem teve quatro filhos: Maria de Peralta Escórcio, batizada em 17 de abril de 1656 e casada com Pedro de Galegos em janeiro de 1676; Belchior de Azevedo, casado com Messia da Costa em 5 de fevereiro de 1689; Baltazar de Azevedo; e José. Se Inês da Luz – mulher de Baltazar de Azevedo – era realmente filha de Manoel da Luz Escórcio, faria sentido que tivesse um neto que em adulto assinasse como Baltazar de Azevedo Escórcio, segundo o costume de batizar os filhos com os nomes dos avós. Rheingantz, por sinal, informa (Vol. II, p. 463) que Manoel da Luz (neto) – filho de Inês – teve um filho chamado Baltazar, batizado na Sé em 4 de maio de 1638, mas que em adulto assinava apenas Baltazar de Azevedo. Como este último poderia ser quase uma década mais jovem que o homem de quem se fala no início deste parágrafo e ainda teve descendência totalmente distinta com uma mulher chamada Jerônima Soares de Pina, a suposição é de que Baltazar de Azevedo Escórcio possa ter sido filho de um irmão ou de uma irmã de Manoel da Luz (neto) que ainda desconhecemos.

Conforme prometi, retomo agora a questão da filiação materna dos filhos de Manoel da Luz Escórcio Drummond. Em seus depoimentos, Inácio da Luz e Maria Escórcia declaram ser filhos, respectivamente, de Maria da Costa e Bárbara Rodrigues. Alguns pesquisadores informam que a primeira mulher de Manoel seria Maria de Brito e não da Costa, como declarado por seu filho Inácio. Creio que haja aí uma suposição por conta dos sobrenomes atribuídos a alguns filhos de Maria Escórcia – Pedro de Sousa Brito, Jerônimo de Sousa Brito, Maria de Sousa Brito e Úrsula de Brito – como se fosse esse Brito derivado da avó materna. Na verdade, é mais provável que venha do ramo paterno, via João Pereira de Sousa, que em seu depoimento no processo de Anchieta, em 23 de agosto de 1620, declara ser filho de “Francisco de Sousa Pereira (sic) e Inês de Brito de Carvalhais”. Se essa explicação estiver correta, a primeira mulher de Manoel da Luz Escórcio se chamava Maria da Costa. Por outro lado, Maria Escórcia se declara filha de Bárbara Rodrigues, que deve ter sido a segunda mulher de seu pai. Se Maria realmente nasceu em 1565, apenas dois anos após seu irmão Inácio da Luz, talvez fosse também filha de Maria da Costa, mas ainda bastante jovem quando seu pai enviuvou pouco depois, pelo que pode ter sido criada pela madrasta Bárbara, a quem passou a considerar como mãe. Sendo essa a explicação correta, Maria seria irmã inteira de Inácio da Luz e meia-irmã de Inês da Luz, esta, sim, filha de Bárbara.

A interpretação apresentada carece de mais comprovação, mas ela fornece uma atualização possível para a Genealogia Paulistana de Silva Leme e para a importante obra de Carlos Rheingantz sobre os pioneiros do Rio de Janeiro. O Título dos Escórcios Drummond de São Vicente e Rio de Janeiro poderia ser como se vê a seguir. Manoel da Luz Escórcio, vale lembrar, descendia de Sir John Drummond V, nobre escocês que desembarcou na Ilha da Madeira e passou a ser chamado João de Escócia ou João Escórcio.


Jose Araujo é genealogista.


José Araújo

Genealogista

2 comentários

Desafios – Genealogia Prática · 9 de maio de 2024 às 19:25

[…] Embora eu ainda não tenha encontrado os assentos de batismo de minha bisavó Argemira e de minha trisavó Maria, consegui, por vias indiretas, não apenas confirmar suas filiações como também subir em suas ascendências de forma significativa e esclarecedora, considerando o que eu já sabia há algum tempo a partir de evidências de um teste genético. Mas a sorte, felizmente, jogou ao meu favor e pude encontrar mais informações sobre meus hexavós Manoel Veloso de Carvalho e Fermiana Maria Xavier, embora o assento matrimonial deles não tivesse sido encontrado devido, novamente, à falta do livro específico. Essa descoberta permitiu expandir esse ramo de minha árvore familiar até a décima-quinta geração e com revelações de que eu não poderia suspeitar, mas deixo isso para os próximos textos porque este já está muito extenso. Só adianto que nesse ramo há ligações com uma irmandade de escravizados da Costa da Mina, com escravizados vindo de Angola, com cristãos-novos que desembarcaram na Bahia com Mem de Sá e foram perseguidos pelo Santo Ofício e com colonos de ascendência escocesa que emigraram da Ilha da Madeira para São Vicente e de lá foram c…. […]

Fugitivos – Genealogia Prática · 28 de maio de 2024 às 15:20

[…] pelo que se declarou acima, pode ter nascido na Bahia. No Rio de Janeiro, ele se casou com Inês da Luz, filha de Manoel da Luz e Bárbara da Fonseca, e com ela teve seis filhos que estavam vivos quando ele faleceu – dois filhos ainda não […]

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