Embora o FamilySearch seja uma das ferramentas mais relevantes para o genealogista contemporâneo, não se pode ignorar que o uso dele apresenta alguns desafios. Alguns desses desafios dizem respeito a questões intrínsecas, ou seja, relativas ao funcionamento ou à administração/uso da ferramenta; outros, a questões extrínsecas, ou seja, relativas aos curadores dos acervos documentais. Entre as questões intrínsecas estão erros (a) de classificação de livros – p.ex. óbito onde deveria ser matrimônio – e até (b) de localização geográfica, como ocorre com o livro de batismos de 1816-1835 da freguesia de Santo Antônio de Jacutinga, que foi atribuído ao Rio de Janeiro e não a Nova Iguaçu, que seria o correto. Ainda entre as questões intrínsecas estão as que se devem a (c) erros de transcrição cometidos por voluntários durante a indexação de livros paroquiais e civis, que dificultam buscas na ferramenta de Pesquisa de Registros. Finalmente, existem atualmente (d) erros cometidos pela transcrição realizada pela ferramenta de indexação por Inteligência Artificial. Nos casos (c) e (d), caberia aos usuários mais experientes corrigir de forma voluntária os conteúdos indexados incorretamente quando se deparassem com eles.
Quanto às questões extrínsecas, uma das mais importantes está relacionada à ausência de livros. Essa ausência pode ocorrer porque livros foram perdidos em incêndios ou inundações nas paróquias onde foram registrados ou mesmo subtraídos delas por pesquisadores pouco éticos. Para lidar com as circunstâncias descritas, há que ter 3Ps: Planejamento, Paciência e Persistência. O Planejamento pode ser demonstrado pela estratégia de, diante da ausência de um livro que deveria conter determinado assento, buscar informações em livros de períodos imediatamente anteriores e posteriores da mesma freguesia. Paciência e Persistência podem ser demonstradas pela análise que apresento a seguir.
Tenho encontrado praticamente todos os desafios que relacionei acima na resolução de um de meus ramos maternos ligado à freguesia de Santo Antônio de Jacutinga, no Rio de Janeiro. Até este momento, devido à falta de livros dessa freguesia em períodos específicos, não encontrei o assento de batismo de minha bisavó Argemira Pereira da Silva, embora seu registro matrimonial informe que ela era “filha natural de Maria Pereira do Céu”. Da mesma forma, também não encontrei o assento de batismo desta última em que se informe que ela era filha de Fermiana Maria de Jesus – ou Fermiana Maria da Conceição (a respeito dessa variação, assista a este vídeo) – e José Pereira da Silva. Felizmente, evidências indiretas me asseguraram que as duas filiações estavam corretas e que Maria Pereira do Céu teve ainda mais seis irmãos, chamados Felizarda, Damiana, João, Carlota, Preciosa e Francisco.
Sobre Carlota, cujo assento de batismo também não foi encontrado pela ausência do livro específico, falei em outro texto. Os assentos de Felizarda, Damiana, João e Preciosa foram encontrados, e no desta última – exibido e transcrito abaixo – se informa que ela teve por padrinhos o casal José Joaquim Galvão e Preciosa Maria de Barcelos – tente se lembrar desses nomes, pois voltarei a falar deles.
Ao primeiro dia do mês de agosto de mil oitocentos e quarenta e sete anos, nesta matriz de Santo Antônio de Jacutinga, batizei e pus os santos óleos em Preciosa, inocente, nascida em maio próximo passado, filha natural de Fermiana Maria de Jesus. Foram padrinhos José Joaquim Galvão e sua mulher Preciosa Maria de Barcelos. Do que fiz este assento. O vigário Manoel dos Santos Silva
A semelhança dos nomes de Preciosa e de sua madrinha de batismo era algo que precisava ser investigado, pois a madrinha poderia ser uma tia ou mesmo a avó da menina batizada em maio de 1847 na freguesia de Jacutinga. Mas vamos fazer um desvio momentâneo e olhar com mais detalhe para o único filho conhecido de Fermiana Maria de Jesus, que em adulto assinava Francisco da Silva Maia. Francisco casou-se na freguesia de Santo Antônio de Jacutinga, em 18 de junho de 1892, com Graciliana Maria da Conceição. Sua certidão de casamento informa apenas que ele era filho natural de Fermiana Maria da Conceição, mas não revela o nome de seu pai, o qual só descobrimos – ou confirmamos – pelo registro de batismo, de que lemos um fragmento a seguir, de sua primeira filha, natimorta, chamada Maria.
[…] em meu cartório compareceu Francisco da Silva Maia, em presença das testemunhas abaixo nomeadas e assinadas, declarou que hoje, a uma hora da manhã, nesta povoação [freguesia de Jacutinga, cidade de Maxambomba], nasceu uma criança morta, do sexo feminino, cor parda, filha legítima dele declarante e de sua mulher Graciliana Maria da Conceição, neta paterna de Fermiana Maria da Conceição e José Pereira da Silva […]
Eu já havia adiantado que Francisco era filho de Fermiana e José Pereira da Silva, e esse registro apenas reitera o conhecimento obtido indiretamente por conta da ausência do livro onde estaria registrado o batismo de Francisco por volta de 1870. Outra prova indireta de que Francisco era parente de minha avó Argemira é o registro de nascimento de Antônio, terceiro filho dele – nascido em Maxambomba, depois conhecida como Nova Iguaçu – em 3 de outubro de 1896. Nesse registro se descobre que o evento foi declarado por Artur Rabelo Guimarães, marido de Argemira e, portanto, meu bisavô materno. Artur, dessa forma, registrou em 1896 o nascimento de um primo de sua mulher e em fevereiro do ano seguinte registrou o óbito de Fermiana, a avó dela.
A certidão de óbito de Fermiana Maria da Conceição, por sua vez, revela que ela era solteira quando morreu, que teria setenta anos de idade e que seus pais não eram conhecidos. Embora confiar em datas de documentos daquela época seja algo temeroso, considerando que ela faleceu com setenta anos em 15 de fevereiro de 1897, supomos que ela tenha nascido entre 1820 e 1827. Por sorte, encontrei o registro de batismo de uma menina com o mesmo nome e que teria nascido em 1822. Esse registro está justamente no já mencionado livro da freguesia de Santo Antônio de Jacutinga que foi por equívoco atribuído ao Rio de Janeiro e não a Nova Iguaçu. Eis o que lemos nele:
Aos quatorze dias do mês de agosto de mil oitocentos e vinte e dois, nesta freguesia de Santo Antônio de Jacutinga, batizei e pus os santos óleos em Fermiana, nascida aos vinte e seis de julho do dito ano, filha legítima de José Joaquim Galvão e de Preciosa Maria de Barcelos, pardos livres. Foram padrinhos Manoel Veloso de Carvalho e Justina Maria da Conceição. De que fiz este assento. O vigário Mariano José de Mendonça.
Por esse registro se descobre que Fermiana era filha de José Joaquim Galvão e Preciosa Maria de Barcelos – ainda se lembrava deles? – , que foram os padrinhos de Preciosa, filha de Fermiana e José Pereira da Silva – José Joaquim foi também padrinho de batismo de sua neta Felizarda, que, como descobri mais tarde, recebeu no batismo o nome da mãe dele em homenagem. Pelo registro também se descobre que José Joaquim e Preciosa eram “pardos livres”, ou seja, descendentes de africanos e que já haviam conseguido ultrapassar a barreira da escravidão. Isso faz sentido, considerando que meu haplogrupo mitocondrial – que herdei de minha mãe, de minha avó materna, de minha bisavó Argemira, de minha trisavó Fermiana e – agora sei – de minha tetravó Preciosa Maria de Barcelos é o L1C2a3b, encontrado atualmente em altas frequências na África central e ocidental. Por fim, o registro informa que Fermiana era “filha legítima”, portanto deveria ser possível encontrar o registro de casamento de seus pais José Joaquim Galvão e Preciosa Maria de Barcelos.
Por sorte, o livro que contém esse registro não desapareceu, pelo que pude encontrar e transcrever o documento relevante, que se lê a seguir.
Aos dezesseis dias do mês de julho de mil oitocentos e vinte e dois anos, nesta freguesia de Santo Antônio de Jacutinga, feitas as diligências necessárias na forma do Sagrado Concílio Tridentino e constituições do bispado, não havendo impedimento e sendo cinco horas da tarde, em minha presença e das testemunhas José Timóteo Pereira e o tenente Rodrigo José Guedes Pinto, por palavras de presente se receberam solenemente em matrimônio José Joaquim Galvão, filho legítimo de José dos Santos Correa e de Felizarda Maria, natural e batizado na freguesia do Desterro do Campo Grande, e Preciosa Maria de Barcelos, filha legítima de Manoel Veloso de Carvalho e de Fermiana Maria Xavier, natural e batizada nesta freguesia de Jacutinga, todos pardos livres. […]
Pelo assento acima se revela que os pais de José Joaquim e Preciosa Maria eram também “pardos livres”, portanto já estavam fora do jugo da escravidão antes da assinatura da Lei Áurea, embora devam ter sido escravizados em algum momento. Uma curiosidade constatada pelos assentos descobertos é a repetição dos nomes das avós nas netas: Fermiana Maria Xavier foi avó de Fermiana Maria da Conceição, e Preciosa Maria de Barcelos foi avó da menina Preciosa batizada em agosto de 1847. Também entre outras filhas de Fermiana Maria da Conceição e José Pereira da Silva observamos essa repetição, pois em 1841 eles tiveram Felizarda, que recebeu no batismo o nome da bisavó materna; e em 1844 tiveram Damiana, que recebeu o nome da avó materna. Ocorre também a repetição de nome entre o neto Francisco da Silva Maia e seu avô Francisco Pereira. O gráfico abaixo representa essas repetições.
Embora eu ainda não tenha encontrado os assentos de batismo de minha bisavó Argemira e de minha trisavó Maria, consegui, por vias indiretas, não apenas confirmar suas filiações como também subir em suas ascendências de forma significativa e esclarecedora, considerando o que eu já sabia há algum tempo a partir de evidências de um teste genético. Mas a sorte, felizmente, jogou ao meu favor e pude encontrar mais informações sobre meus hexavós Manoel Veloso de Carvalho e Fermiana Maria Xavier, embora o assento matrimonial deles não tivesse sido encontrado devido, novamente, à falta do livro específico. Essa descoberta permitiu expandir esse ramo de minha árvore familiar até a décima-quinta geração e com revelações de que eu não poderia suspeitar, mas deixo isso para os próximos textos porque este já está muito extenso. Só adianto que nesse ramo há ligações com escravizados vindos de Angola, com cristãos-novos que desembarcaram na Bahia com Mem de Sá e foram perseguidos pelo Santo Ofício e com colonos de ascendência escocesa que emigraram da Ilha da Madeira para São Vicente e de lá foram colonizar a jovem cidade do Rio de Janeiro.
José Araújo é genealogista.
4 comentários
Fermiana – Genealogia Prática · 7 de maio de 2024 às 09:03
[…] Atualização: Fermiana teve mais dois filhos além de Maria e Carlota: Preciosa e Francisco da Silva Maia, de quem trato em próximo texto. […]
Forros – Genealogia Prática · 20 de maio de 2024 às 10:44
[…] texto anterior falei sobre a importância dos processos matrimoniais, que podem trazer informações valiosas […]
Confuso – Genealogia Prática · 6 de junho de 2024 às 15:44
[…] nomes confessionais, não raramente usavam outras formas desses nomes ao longo da vida. Esse foi o caso de minha tetravó Fermiana, que foi identificada como Fermiana Maria de Jesus nos registros de batismo de seus netos e como […]
Táticas – Genealogia Prática · 12 de junho de 2024 às 08:40
[…] Os textos originais em que apresento os resultados do uso dessas estratégias podem ser lidos aqui e aqui. Espero que as táticas apresentadas possam ser úteis para os leitores que tenham muros […]
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