Em texto anterior falei sobre a importância dos processos matrimoniais, que podem trazer informações valiosas sobre os ramos familiares mais antigos, dos quais provavelmente não reste memória entre parentes vivos e talvez nem mesmo restem livros que possam ser pesquisados nas paróquias ou no FamilySearch. Encontrar um desses processos pode também depender de sorte e só posso usar essa palavra para relatar a alegria que tive por encontrar o que apresento a seguir: o processo pelo qual se casaram meus hexavós maternos Manoel Veloso de Carvalho e Fermiana Maria Xavier. Falei deles no texto anterior, portanto este texto é a continuação que prometi lá.

O assento de batismo de minha trisavó Fermiana Maria da Conceição, apresentado no texto anterior, informa que ela era filha de pais pardos livres, pelo que sabemos que seus pais José Joaquim Galvão e de Preciosa Maria de Barcelos descendiam de africanos que haviam sido escravizados. Talvez um deles tivesse sido escravizado, mas isso só se poderia saber pela descoberta de mais documentos. Por ora, reapresento o assento de batismo de minha trisavó.

Aos quatorze dias do mês de agosto de mil oitocentos e vinte e dois, nesta freguesia de Santo Antônio de Jacutinga, batizei e pus os santos óleos em Fermiana, nascida aos vinte e seis de julho do dito ano, filha legítima de José Joaquim Galvão e de Preciosa Maria de Barcelos, pardos livres. Foram padrinhos Manoel Veloso de Carvalho e Justina Maria da Conceição. De que fiz este assento. O vigário Mariano José de Mendonça.

Por sorte, o registro de casamento dos pais de Fermiana foi encontrado e por ele descobrimos que seus pais também eram pardos livres e filhos legítimos, pelo que continuei na busca por mais registros matrimoniais. Infelizmente, me deparei com a falta de livros da paróquia de Santo Antônio de Jacutinga para o período. Por ora, eis novamente o assento matrimonial dos pais de Fermiana.

Aos dezesseis dias do mês de julho de mil oitocentos e vinte e dois anos, nesta freguesia de Santo Antônio de Jacutinga, feitas as diligências necessárias na forma do Sagrado Concílio Tridentino e constituições do bispado, não havendo impedimento e sendo cinco horas da tarde, em minha presença e das testemunhas José Timóteo Pereira e o tenente Rodrigo José Guedes Pinto, por palavras de presente se receberam solenemente em matrimônio José Joaquim Galvão, filho legítimo de José dos Santos Correa e de Felizarda Maria, natural e batizado na freguesia do Desterro do Campo Grande, e Preciosa Maria de Barcelos, filha legítima de Manoel Veloso de Carvalho e de Fermiana Maria Xavier, natural e batizada nesta freguesia de Jacutinga, todos pardos livres. […]

Havia uma possibilidade de encontrar os processos matrimoniais e assim busquei ajuda da arquivista da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro, que sempre foi solícita e parceira em minhas pesquisas e por isso aqui registro meu agradecimento. Para minha sorte e alegria, ela confirmou ter encontrado o processo matrimonial de Manoel Veloso de Carvalho e Fermiana Maria Xavier, de que exibo abaixo a parte superior da capa, onde se lê que os nubentes eram pardos forros.

Processo matrimonial – ACMRJ: Cx. 1966, N. 32777

Pela declaração, sabemos que os nubentes eram também pessoas de ascendência africana. As identidades de seus pais são reveladas no corpo do processo, onde encontramos os assentos de batismo deles e um documento ainda mais interessante de que falo adiante. O assento de batismo de Manoel revela o seguinte:

Aos quatorze dias do mês de julho de mil setecentos e setenta e seis, nesta freguesia de Santo Antônio de Jacutinga, batizei e pus os santos óleos a Manoel, nascido no primeiro deste mês, filho de Maria Angola, e a criança parda. Foram padrinhos José Pereira, filho do ajudante Luiz Pereira, e Luiza Pereira, filha do dito, escravos de D. Inês de Muniz de Barcelos. E fiz este assento para constar dia e era ut supra. O Vigário Luiz Inácio de Pina.

Finalmente encontrei a primeira de minhas antepassadas de origem africana comprovada – Maria – e já sei que ela foi enviada para o Brasil a partir de Angola, mas isso é tudo o que se pode saber por agora. Percebeu que os padrinhos de Manoel eram escravizados e pertenciam a uma senhora chamada Inês Muniz de Barcelos? Lembra-se de que a mãe de minha trisavó se chamava Preciosa Maria de Barcelos? A semelhança não é fortuita, como comprovarei adiante com o tal documento prometido. Antes vamos à transcrição do assento de batismo de Fermiana, que também está no corpo do processo matrimonial.

Aos vinte três dias do mês de janeiro de mil setecentos e setenta e seis anos, nesta freguesia de Santo Antônio de Jacutinga, batizei e pus os santos óleos a Fermiana, filha de Ana, parda livre, solteira, nascida a quinze do dito mês. Foram padrinhos o capitão Manoel Correa Vasques e Dona Inácia Francisca, solteira, filha de D. Inácia Maria Tavares, viúva desta freguesia. De que para constar fiz este assento. O Vigário Luiz Inácio de Pina.

Batismo de Fermiana

Pelo assento esclarecemos em parte a filiação de Fermiana Maria Xavier em Ana, mulher afrodescendente e já liberta, mas não sabemos quem foi seu pai. Pelo assento de Manoel também não sabemos quem foi seu pai, mas é impossível não perceber que em adulto ele usava um sobrenome composto – Veloso de Carvalho. Na mesma freguesia vivia um Miguel Veloso de Carvalho e era tentador presumir que este pudesse ser o pai de Manoel. Essa suspeita foi comprovada com a descoberta do processo matrimonial, no qual o noivo pediu que fosse transcrito o documento – finalmente ele! – cujo teor se lê abaixo.

Saibam quanto este público instrumento de escritura de liberdade virem que no ano de nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil setecentos e oitenta e um ano, aos vinte e quatro dias do mês de julho do dito ano, nesta cidade do Rio de Janeiro, em meu escritório apareceu presente Miguel Veloso de Carvalho, pessoa reconhecida das testemunhas abaixo nomeadas e assinadas, e por ele me fez dito em presença das mesmas testemunhas que é senhor e possuidor de um pardo por nome Manoel, seu filho, que tivera, em tempo que ele outorgante era solteiro, de uma escrava sua por nome Maria, nação Angola. E por esta razão, por este instrumento, e via melhor de Direito dava alforria e liberdade de hoje para todo sempre ao dito pardo Manoel e ficaria forro e liberto, isento de toda a escravidão e cativeiro como se forro nascesse de ventre livre, e poderia ir para onde muito bem lhe [parecesse] sem [pessoa alguma o possa impedir] por estar forro e liberto pela razão sobredita, pelo que pedia a Justiça de sua Majestade, que Deus […] e em virtude da mesma se obrigava a sua observância em fé da verdade me pediu lhe fizesse este instrumento nesta nota que lhe […] em tabelião […] e nome do libertado […] ausente ao dezoito deste em que assinou com as testemunhas presentes […] Rodrigues de Carvalho, morador no Engenho Novo e João Pereira Gonçalves Teixeira, soldado da Artilharia, reconhecidos por mim tabelião Simão Pereira […], digo, Miguel Veloso de Carvalho e Manoel Rodrigues de Carvalho, João Pedro Gonçalves Teixeira. A qual escritura se acha lavrada em o livro atual de minha nota […]

Eis, portanto, a grande descoberta: Manoel nasceu escravizado, filho de uma mulher transportada para o Brasil desde um porto em Angola e que deve ter permanecido nessa condição. Mas ele foi reconhecido pelo pai branco e libertado pelo documento transcrito acima quando tinha apenas cinco anos de idade. Fica assim esclarecida sua condição de pardo liberto. Sobre as origens da antepassada africana de Fermiana ainda não há pistas. Mas a busca prossegue.


José Araújo é Genealogista.


José Araújo

Genealogista

3 comentários

Fugitivos – Genealogia Prática · 29 de maio de 2024 às 07:50

[…] Veloso, já sabemos por textos anteriores, quando solteiro engravidou Maria Angola, escravizada que pertencia a sua mãe. O menino que nasceu […]

Desafios – Genealogia Prática · 4 de junho de 2024 às 19:44

[…] próximos textos porque este já está muito extenso. Só adianto que nesse ramo há ligações com escravizados vindo de Angola, com cristãos-novos que desembarcaram na Bahia com Mem de Sá e foram perseguidos pelo Santo […]

Táticas – Genealogia Prática · 12 de junho de 2024 às 08:48

[…] textos originais em que apresento os resultados do uso dessas estratégias podem ser lidos aqui e aqui. Espero que as táticas apresentadas possam ser úteis para os leitores que tenham paredes […]

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