Genealogista é alguém que aprendeu a fazer perguntas. Essa afirmação pode soar esquisita, afinal, segundo o senso comum, um genealogista seria justamente alguém que encontra respostas para as perguntas trazidas pelos clientes, tais como: onde nasceu meu avô português? existe algum cristão-novo em minha árvore familiar? A afirmação pode soar esquisita, mas o fato é que não se chega às respostas sem fazer boas – e muitas – perguntas. E eu explico essa afirmação fazendo outra afirmação igualmente esquisita: quem naturaliza os fatos da realidade – quem os toma como sempre verdadeiros ou inevitáveis – dificilmente fará uma boa pesquisa genealógica.

Vou começar a desfazer a teia dessas afirmações encadeadas dando um exemplo bem simples. Durante minha pesquisa familiar, eu me deparei com um fato da realidade bastante ruim para quem quer construir uma árvore genealógica: todos os meus bisavós maternos eram filhos de pais desconhecidos e foram registrados como filhos naturais (ou ilegítimos) apenas de suas mães. Era isso o que afirmavam os documentos encontrados sobre eles, e o senso comum ditaria que nada mais poderia ser feito. A certidão de casamento de meus bisavós João (1848-1921) e Teodora (1861-1927) vem a calhar neste ponto e, por isso, transcrevo o trecho relevante do documento.

Número 11. Aos 17 dias do mês de novembro do ano de 1900, neste distrito de Marapicu, município de Iguaçu, Estado do Rio de Janeiro, ao meio-dia na casa de residência e sala de audiências do primeiro Juiz de Paz Major Manoel Pinto Marques, presente este juiz, comigo escrivão de seu cargo, abaixo nomeados os contraentes João Pereira Belém e Theodora Maria da Conceição […] receberam-se em matrimônio, segundo o regime comum, os ditos contraentes: o primeiro [João Pereira Belém] com 52 anos de idade, agricultor, filho ilegítimo de Joaquina da Conceição, o segundo [Teodora Maria da Conceição] com 48 anos de idade, filha ilegítima de Maria Gaspar, ambos naturais do Distrito de Bananal de Iguaçu, digo, Bananal de Itaguaí e domiciliados neste distrito […]

A situação permaneceria imutável e a pesquisa teria um fim precoce se eu não fizesse uma pergunta bem simples: não existem outros documentos em que os pais de João e Teodora sejam nomeados? E, sim, esse documento existia: meus bisavós tiveram, depois de casados, uma filha chamada Esmeralda em cujo registro de nascimento, parcialmente transcrito abaixo, foram informados os nomes dos avós paternos e maternos.

[…] nasceu uma criança do sexo feminino, de cor parda, filha legítima de João Pereira Belém e Teodora Maria da Conceição, residentes neste distrito, avós paternos Pedro Gomes de Moraes e Joaquina Morais, e maternos Felipe Rangel e […], digo, Maria Laurinda da Misericórdia. A criança há de chamar-se Esmeralda […]

E foi assim que esclareci a identidade dos pais de dois de meus bisavós João e Teodora. As identidades dos pais do outro casal de bisavós – Artur (1868-1917) e Argemira (1874-1935) – seriam bem mais difíceis de esclarecer, pois não havia um documento que revelasse essas informações. A pergunta, ao menos para o caso de meu bisavô Artur, foi outra: haveria outra evidência, dentro do que era conhecido, que pudesse sugerir a identidade de seu pai? E havia uma evidência muito óbvia: seu próprio sobrenome. Em seu registro matrimonial, parcialmente transcrito abaixo, ele foi identificado como “filho natural de Julinda Dias Seabra”.

[…] receberam-se em matrimônio, segundo o regime comum e o costume do Estado, Artur Rabelo Guimarães e Argemira Pereira da Silva, ele idade vinte e cinco anos, solteiro, brasileiro, filho natural de Julinda Dias Seabra, já falecida, natural e residente neste distrito […]

Mas se percebe de imediato uma notável discrepância entre seu sobrenome – Rabelo Guimarães – e o de sua mãe – Dias Seabra. E havia mais uma evidência: existia na mesma localidade uma importante família portuguesa que carregava o tal sobrenome composto de Artur. A suposição era de que um dos homens daquela família seria o pai de meu bisavô, o que pude constatar há pouco tempo após analisar detidamente os resultados de testes de DNA autossômico feitos por mim e por meus primos que também descendiam de Artur. A análise indicou correspondências (matches) relacionadas diretamente à tal família portuguesa – e assim deduzi que Artur seria filho do cidadão Antônio Rabelo Guimarães (1846-1888).

Por vezes, enfim, o genealogista já tem os documentos em mão, mas esses mesmos documentos abrem oportunidades para perguntas, o que pode parecer algo esdrúxulo, mas não é. Retomo aqui a afirmação feita inicialmente: quem naturaliza os fatos da realidade – ou seja, quem os toma como sempre verdadeiros ou inevitáveis – dificilmente fará uma boa pesquisa genealógica. Trago mais um exemplo de minha pesquisa para explicar a questão: durante a investigação da ascendência de minha bisavó Argemira, cheguei ao casal Manoel Veloso de Carvalho e Firmiana Maria Xavier, cujo processo de casamento – de 1794 – encontrei no arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro. Nesse processo se revela que ambos eram pardos forros, ou seja, pessoas afrodescendentes que não eram mais escravizadas. Essa minha ascendência era já conhecida, pois meu teste de DNA autossômico revelou o haplogrupo L1c2a3b, de indubitável origem africana, que herdei de minha mãe, da mãe dela, de Argemira, de Firmiana e assim por diante.

Processo Matrimonial de Manoel e Firmiana – 1794 (ACMRJ)

Mas, voltando ao processo matrimonial, no corpo desse documento havia um trecho extremamente valioso: a transcrição da carta de liberdade de Manoel, que ele fez constar no documento, pela qual se revelava o nome de sua mãe – a africana “Maria, nação Angola” – e o fato de que ele nasceu no Brasil, na condição de escravizado, e foi libertado por seu pai Miguel (1738-1808) aos cinco anos de idade. Foi o sobrenome desse pai – Veloso de Carvalho – que ele adotou provavelmente quando completou 15 anos. Preciosa, a filha de Manoel e Firmiana de quem descendo diretamente, por sua vez, adotou o sobrenome Barcelos da família de Inês Muniz de Barcelos (1716-1775), a avó de seu pai Manoel.

Transcrevo a seguir o conteúdo da citada carta de liberdade de Manoel.

Saibam quanto este público instrumento de escritura de liberdade virem que no ano de nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil setecentos e oitenta e um ano, aos vinte e quatro dias do mês de julho do dito ano, nesta cidade do Rio de Janeiro, em meu escritório apareceu presente Miguel Veloso de Carvalho, pessoa reconhecida das testemunhas abaixo nomeadas e assinadas, e por ele me fez dito em presença das mesmas testemunhas que é senhor e possuidor de um pardo por nome Manoel, seu filho, que tivera, em tempo que ele outorgante era solteiro, de uma escrava sua por nome Maria, nação Angola. E por esta razão, por este instrumento, e via melhor de Direito dava alforria e liberdade de hoje para todo sempre ao dito pardo Manoel e ficaria forro e liberto, isento de toda a escravidão e cativeiro como se forro nascesse de ventre livre, e poderia ir para onde muito bem lhe [parecesse] sem [pessoa alguma o possa impedir] por estar forro e liberto pela razão sobredita, pelo que pedia a Justiça de sua Majestade, que Deus […] e em virtude da mesma se obrigava a sua observância em fé da verdade me pediu lhe fizesse este instrumento nesta nota que lhe […] em tabelião […] e nome do libertado […] ausente ao dezoito deste em que assinou com as testemunhas presentes […] Rodrigues de Carvalho, morador no Engenho Novo e João Pereira Gonçalves Teixeira, soldado da Artilharia, reconhecidos por mim tabelião Simão Pereira […], digo, Miguel Veloso de Carvalho e Manoel Rodrigues de Carvalho, João Pedro Gonçalves Teixeira. A qual escritura se acha lavrada em o livro atual de minha nota […]

As perguntas relevantes neste caso em que os documentos já traziam todas as informações de valor genealógico seriam: (1) era comum fazer constar uma carta de liberdade em processo matrimonial? e (2) por que Manoel fez constar sua carta no processo? Não tenho dados suficientes para afirmar que o fato observado fosse comum na época e não encontrei nenhuma evidência disso analisando os processos resumidos por Dalmiro da Motta Buys de Barros em sua obra sobre os processos de casamentos do bispado do Rio de Janeiro. Quanto à razão para Manoel ter pedido a transcrição da carta no processo, posso supor que tivesse relação com a possibilidade de que sua condição de liberto – ou a dos filhos que tivesse com Firmiana – fosse em algum momento questionada, afinal eles viviam em plena vigência do regime escravocrata. Nesse caso específico, eu não posso dizer que tenha encontrado as respostas. Seriam ainda hipóteses a serem averiguadas futuramente.


José Araújo é genealogista.


José Araújo

Genealogista