O pesquisador afoito e inexperiente pode ter uma impressão de verdadeiro caos ao tentar fazer sentido do sistema de aplicação dos apelidos/sobrenomes em assentos paroquiais portugueses dos séculos passados. Fora a estabilidade relativa de herança por costado – filhas herdam o apelido da mãe e filhos, do pai – havia condições intervenientes que poderiam trazer mais variação ao sistema, como a recuperação de um apelido antigo em função do recebimento de uma herança em que se obrigava o herdeiro a adotar o apelido do proprietário dos bens.
Tenho em minha árvore um caso bastante ilustrativo desse caos em que, durante uma geração, os apelidos dos pais e avós dos batizados em um núcleo familiar foram registados de formas diferentes. À primeira vista, um desavisado poderia acreditar que se tratasse de pessoas diferentes e aparentadas, porém uma análise detalhada permitiu afirmar que se tratava das mesmas pessoas.
O caso em questão foi encontrado no núcleo familiar de José António (1746-1841), meu tetravô. José casou em primeiras núpcias com Josefa Rosa, em 15 de fevereiro de 1794, em Barcos, Viseu. Ambos tiveram os nove filhos identificados na tabela abaixo.
Criança | Nascimento | Pai | Avós Paternos | Mãe | Avós Maternos |
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António | 1795 | José António de Carvalho | António dos Santos e Ana da Assunção | Josefa Rosa do Esp. Sto. | Manuel de Araújo e Antónia Maria da Nóbrega |
Maria Rita | 1798 | José António de Carvalho | António dos Santos Morgado e Ana da Assunção | Josefa Rosa do Esp. Sto. | Manuel de Araújo e Antónia Maria da Nóbrega |
António | 1801 | José António | António dos Santos e Ana da Assunção | Josefa Rosa | Manuel de Araújo e Antónia da Nóbrega |
José | 1804 | José António de Carvalho | António dos Santos e Ana da Assunção | Josefa Rosa do Esp. Sto. | Manuel de Araújo e Antónia da Nóbrega |
Luísa Delfina | 1806 | José António de Carvalho | António dos Santos e Ana da Assunção | Josefa Rosa do Esp. Sto. | Manuel de Araújo e Antónia da Nóbrega |
Luís | 1809 | José António dos Santos | António dos Santos e Ana da Assunção | Josefa Rosa | Manuel de Araújo e Antónia da Nóbrega |
José António | 1813 | José dos Santos Morgado | António dos Santos e Ana da Assunção | Josefa Rosa | Manuel de Araújo e Antónia da Nóbrega |
Francisco | 1816 | José dos Santos Morgado | António dos Santos e Ana da Assunção | Josefa de Araújo | Manuel de Araújo e Antónia da Nóbrega |
Joaquina | 1818 | José dos Santos | António dos Santos e Ana da Assunção | Josefa Rosa | Manuel de Araújo e Antónia da Nóbrega |
O facto a ser observado é a variação na forma como os apelidos / sobrenomes dos pais e dos avós paternos e maternos foram registados pelo(s) pároco(s). José António recebe, em diferentes momentos, os apelidos Carvalho, de seu avô paterno; Santos, de seu pai; e Morgado, alcunha de seu pai que acabou sendo passada para ele. Sua mulher Josefa Rosa recebe o apelido do pai – Araújo – apenas no registo de seu filho Francisco, em 1816, sem jamais ter recebido o da mãe – Nóbrega.
O fenômeno descrito não sugere nenhum padrão, e a chave para resolver um possível caso de homônimos estaria, em parte, na relativa estabilidade dos nomes dos avós paternos (António dos Santos e Ana da Assunção), da mãe (Josefa Rosa), e dos avós maternos (Manuel de Araújo e Antónia da Nóbrega).
Para minha sorte, no assento de António, nascido em 1801, o aparente caos ficou registado em uma anotação do pároco, que escreveu: “António, filho legítimo de José de Carvalho, digo, José António de Carvalho e de Josefa Rosa” e ainda emendou: “filho de José dos Santos Morgado“, reconhecendo a alcunha que esse meu antepassado herdou de seu pai.
Em casos similares de variações nos apelidos/sobrenomes, a estratégia para desambiguação, em vista do risco de existência de homônimos ainda desconhecidos, envolve:
- Buscar os assentos relevantes e disponíveis em que a pessoa em foco seja aparentemente nomeada;
- Relacionar todas as variações observadas de forma padronizada – p.ex. em uma tabela;
- Comparar as variações em busca de eventuais padrões (repetições e combinações) nos apelidos e/ou nomes;
- Verificar a consistência e coerência das datas, p.ex. fulano estaria casado, teria idade para ser pai de sicrano, e o intervalo de tempo de nascimento entre sicrano e sicrano é razoável para confirmá-los como filhos dos mesmos pais.
Para aprender mais sobre a onomástica portuguesa, recomendo a leitura das seguintes obras:
- Os Apelidos Portugueses: um Panorama Histórico – Carlos Bobone
- Descubra as suas origens – Francisco Queiroz e Cristina Moscatel
- Dicionário das Famílias Portuguesas – D. Luiz de Lancastre e Tavora
- Genealogia Prática: 100 Perguntas & Respostas sobre Genealogia – José Paulo de Araújo
- Genealogia Prática: Documentos – José Paulo de Araújo
José Araújo é linguista e genealogista.