Meus avós paternos emigraram de Portugal para o Brasil no início do século XX, tal como fizeram muitas outras famílias portuguesas antes e como fariam ainda outras até depois da metade daquele século. A narrativa que se costuma ouvir é de que Portugal era um país agrário e muito pobre, portanto seus cidadãos, por vezes trazendo toda a família, vinham para o Brasil à busca de condições de vida melhores. A suposição dessa narrativa é de que todos os emigrados eram pobres ou mesmo miseráveis, mas existem pistas que nos permitem desconstruir tal narrativa para nos aproximarmos dos factos.
Essas pistas podem ser encontradas nos mesmos documentos que usamos para escrever a genealogia de nossas famílias: as certidões e os assentos paroquiais de batismo, casamento e óbito. As pistas em questão podem estar evidenciadas no uso de termos como proprietário, Dona e, nos documentos produzidos a partir do século XIX, na identificação de profissões. O exemplo abaixo é a transcrição de trecho do óbito de meu sexto avô António Pinto (1727-1808). Observe que sua profissão é nomeada com destaque:
Ao primeiro de junho do ano de 1808, faleceu da vida presente Antonio Pinto, Cirurgião, viúvo que ficou de Jerônima de Araújo e natural desta freguesia, indo ou sendo chamado a Távora para ver o abade da mesma freguesia de São João Batista de Távora […]
Nesse ramo da família haveria ainda outros profissionais da área médica: José Pinto Rebello de Carvalho (Pestana) (1762-1842), personagem de várias peripécias já apresentadas aqui no site e seu pai José Pinto do Souto (1762-1842), que foi casado com Bárbara Theresa Ribeiro. O assento de óbito de Theresa Amália (1789-1862), outra filha de José Souto e Bárbara Ribeiro, fornece mais uma pista importante na identificação do status social da família:
Aos nove dias do mês de maio de 1862, às duas horas da noite, na casa da Rua da Cainha desta freguesia de Nossa Senhora da Assunção de Barcos, concelho de Tabuaço, distrito eclesiástico de Barcos, diocese de Lamego, faleceu D. Theresa Amália, costureira, da idade de 76 anos, viúva de José de Menezes, natural e paroquiana desta freguesia, filha legítima de José Pinto Rebello do Souto e Bárbara Ribeiro, naturais desta freguesia, neta paterna de António Pinto Cirurgião e Maria Josefa, esta natural de Tabuaço, aquele desta freguesia de Barcos, e materna de Manoel Fernandes, natural desta freguesia, e Luisa Ribeiro, da freguesia de Tabuaço.
Observe que, além do uso do termo Dona, que indica alguma projeção social, seu assento de óbito ainda identifica a profissão de seu avô – meu já citado sexto avô – mais de 50 anos após a morte dele. Não obstante a situação financeira da família possa ter sofrido mudanças nas décadas seguintes, o ramo apresentado nos assentos acima sem nenhuma dúvida teve destaque na sociedade local.
Saindo do século XIX para o início do XX, as pistas surgem na identificação de meu avô paterno como taberneiro e proprietário, termos que não permitem a sustentação da narrativa – que ouvi certa vez – de uma família pobre de agricultores que emigrou para o Brasil à busca de melhores condições de vida.
José Araújo é linguista e genealogista.
2 comentários
Serviçal – Genealogia Prática · 17 de julho de 2020 às 07:33
[…] e morreu na vila de Barcos, tendo as mulheres, via de regra, sido “do lar” ou até costureiras, e os homens, alfaiates, farmacêuticos e médicos, para citar apenas alguns […]
Vida – Genealogia Prática · 10 de setembro de 2020 às 08:54
[…] um humilde camponês, como se poderia supor a respeito da região e época em que viveu – em texto anterior, eu já havia apresentado evidências da situação financeira de outros ramos da família antes de […]
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