Quando buscamos assentos e certidões de nossos antepassados – não importa se para conhecer a história da família ou para obter outra cidadania -, é inevitável que acabemos descobrindo mais do que simples informações factuais como datas e locais de nascimento, casamento e óbito. A maior riqueza dessa busca e das descobertas que fazemos nelas está no conhecimento da história de vida daqueles que nos precederam, mesmo que enxerguemos apenas instantâneos dessas vidas. A vida que quero apresentar aqui é a de meu tio-bisavô paterno Rafael de Araújo (1840-1900).
Rafael era filho de meu trisavô Júlio de Araújo (1794-1866) e de sua mulher Maria Rita (1798-1862), naturais e moradores da vila de Barcos, no concelho de Tabuaço, em Viseu, Portugal. Júlio e Maria Rita casaram-se em 20 de junho de 1823 e foram “dispensados no segundo grau de consanguinidade“, pois eram primos, ambos netos de meu quinto-avô Manoel de Araújo (1728-1792). No assento de batismo de Rafael lemos que seu padrinho era primo por ambos os costados:
Aos 26 dias do mês de julho do ano de 1840, eu, Antonio Rodrigues Pinheiro, pároco nesta igreja de Nossa Senhora da Assunção desta vila de Barcos, nela solenemente batizei a Rafael, nascido no dia 11 do referido mês, filho legítimo de Júlio de Araújo e de sua mulher Maria Rita, primeiro matrimônio entre ambos. Neto paterno de Manoel de Araújo e de Luísa Motta, materno de José dos Santos Morgado e de Josefa de Araújo. Foram padrinhos Manoel Antonio de Araújo, primo em primeiro grau pela parte paterna e materna, Josefa, solteira, filha legítima de José Rodrigues e de Maria Jerônima, todos desta vila. Foram testemunhas José Antonio de Araújo e José da Motta que comigo assinaram.
O assento de óbito de Júlio de Araújo informa que o falecido era “viúvo de Maria Rita, da idade de 70 anos, proprietário“. Essa informação sugere que a Rafael de Araújo não era um humilde camponês, como se poderia supor a respeito da região e época em que viveu – em texto anterior, eu já havia apresentado evidências da situação financeira de outros ramos da família antes de sua vinda para o Brasil.
Quando completou 20 anos, Rafael foi recrutado pelo exército, conforme registro encontrado no Livro nº 22 – Livro de Matrícula dos Oficiais e Praças de Pret, do Regimento de Infantaria nº 9, 2º Batalhão, 1859, páginas 134 e 135, disponível em formato digital na base de dados do Projeto GERMIL – Genealogia em registos militares. O registro informa que Rafael era “proprietário, [tinha] 1,53m de altura, cabelos pretos, olhos castanhos, rosto comprido, boca regular, cor natural e uma cicatriz no polegar esquerdo“. Sua passagem foi bem breve, pois [deu entrada] “no hospital regimental em 13 de outubro de 1860″ e [deu baixa] do serviço “por ser substituído em 9 de novembro de 1860“.
Sabemos que Rafael retornou à sua aldeia natal após a baixa, pois encontramos o registro de batismo de sua sobrinha Cândida em 10 de junho de 1877, em que se informa que ele foi padrinho. Cândida era filha de seu irmão José Antonio de Araújo e de Maria Cândida. Também nesse documento temos evidência de algo inesperado: apenas dezessete anos após seu desligamento do serviço militar, Rafael parece ter sofrido uma queda em sua situação financeira, pois ele é identificado como jornaleiro de profissão, ou seja, pessoa que é paga por dia trabalhado na lavoura.
Infelizmente, a situação de Rafael parece não ter sofrido alteração até sua morte em 23 de setembro de 1900, como informa seu óbito:
Aos 23 dias do mês de setembro do ano de mil e novecentos, às nove horas do dia, na casa número 64 da rua da fonte desta freguesia de Nossa Senhora da Assunção de Barcos, concelho de Tabuaço, diocese de Lamento, faleceu, tendo recebido os sacramentos da santa madre igreja, um indivíduo do sexo masculino, por nome Rafael de Araújo, de idade de 60 anos, solteiro, jornaleiro, natural e morador nesta freguesia, filho legítimo de Júlio de Araújo e de Maria Rita, falecidos, naturais desta freguesia, o qual não fez testamento nem deixou filhos e foi sepultado no cemitério público. […]
Rafael não só morreu em situação humilde como não deixou descendentes. Isso é tudo o que se sabe sobre ele, pois não há conhecimento de sua existência entre os parentes paternos mais idosos. A reconstrução de sua história de vida a partir dessas breves evidências é uma forma de homenagem, para que sua vida seja conhecida pelas novas gerações.
José Araújo é linguista e genealogista.