O tráfico transatlântico de africanos escravizados durou mais de 300 anos e trouxe milhões de indivíduos – majoritariamente homens jovens, mas também mulheres e crianças – para as costas do continente americano, a partir de onde foram vendidos e espalhados pelos territórios das nações que se formavam a fim de serem explorados na produção agrícola (de açúcar, algodão, café) e na extração mineral.
Esse tráfico se deu por meio de quatro rotas desde a África, pelas quais alguns grupos étnicos tiveram inicialmente destino definido nas américas:
- A primeira rota estabeleceu-se no século XVI e partiu dos portos de Goreia e Cabo Verde com destino às lavouras do Norte e Nordeste do Brasil. Por meio dela foram traficados africanos das região hoje compreendida por Senegal, Gâmbia, Guiné e Guiné Bissau – conhecida como Senegâmbia – que representaram 10% dos africanos ocidentais transportados para o Brasil. Os povos afetados foram os hauçás, os acãs e os iorubás;
- A segunda rota estabeleceu-se do século XVII até 1850 entre a região que hoje compreende Gana, Togo, Benin e Nigéria – conhecida como Costa da Mina – até o Grão-Pará, a Bahia e Pernambuco. Daí saíram 74% dos africanos ocidentais que chegaram no Brasil. Entre os povos afetados estavam os ashantis, o ibos, os fulanis e novamente os hauçás e os iorubás, que ficaram genericamente conhecidos como minas e foram muito explorados na mineração;
- A terceira rota sobrepôs-se às anteriores por ter durado desde o século XVI até a abolição do tráfico no século XIX, saindo do Congo, Gabão e Angola até os portos do Rio de Janeiro e de São Paulo. Essa rota foi responsável pela chegada dos benguelas, dos angolas e dos congos, que foram explorados no serviço agrícola e também doméstico;
- A quarta rota, enfim, estabeleceu-se desde o final do século XVIII até abolição no século XIX, partindo de Moçambique para o Sudeste e o Sul do Brasil. Essa rota prosperou por causa do preço mais vantajoso dos escravos moçambicanos e pela alta demanda por mão de obra nas lavouras do Brasil meridional. Os povos afetados foram os monjolos e os moçambiques.
Embora as rotas parecessem ter destino definido no Brasil, a proibição do tráfico transatlântico por pressão da Inglaterra e a necessidade de mão de obra para as lavouras de café do sudeste no século XIX estimularam o tráfico dentro do território brasileiro, pelo que grande número de africanos e seus descendentes nascidos no Brasil foi vendido das províncias do nordeste e da região de Minas Gerais para as lavouras de São Paulo e do Vale do Paraíba fluminense.
Esse tráfico interno revela-se um grande complicador para o afrodescendente que deseja conhecer suas origens ancestrais por meio de testes de DNA, como bem posso atestar, pois descendo de ao menos duas mulheres afrodescendentes por meu ramo materno – minhas bisavós Theodora Maria da Conceição e Maria Pereira do Céu, ambas naturais do Rio de Janeiro. A ascendência africana delas foi comprovada por meio de testes de DNA mitocondrial feitos por mim e por uma prima materna.
Para tentar esclarecer as origens étnicas dessas ancestrais africanas, no entanto, recorro aos testes de DNA autossômico feitos por mim e um primo materno. Nossas origens familiares são trocadas: eu descendo de portugueses pelo ramo paterno e ele, pelo ramo materno, mas temos as mulheres nomeadas acima como antepassadas pelo ramo oposto. É certo que uma origem familiar portuguesa não elimina a possibilidade de uma ascendência africana subsaariana e que os testes genéticos ainda não são absolutamente precisos, mas é com essas limitações em vista que comparo abaixo o resultado de meu teste com o de meu primo.
Foram considerados na análise apenas os percentuais superiores a 1%, e o percentual norte africano foi desprezado, pois costuma ter relação com a ocupação moura na Península Ibérica. Em relação ao DNA subsaariano, portanto, os resultados sugerem que nossa herança genética derive de escravizados traficados da África por duas rotas: a da Costa da Mina e a de Moçambique, esta mais recente que a anterior. A etapa seguinte da análise envolve a identificação de qual antepassada – Theodora ou Maria do Céu – estaria relacionada a cada percentual. As diferenças percentuais são atribuíveis à variação normal da herança genética.
Visto que Theodora é identificada como natural de Bananal de Itaguaí (atualmente Seropédica) e que seu marido João Pereira Belém descendia de uma família de cafeicultores que se ramificou pelo Vale do Paraíba fluminense nos séculos XVIII e XIX, suspeito que ela seja descendente de escravizados traficados pela rota da Costa da Mina que poderiam já estar no Brasil há mais tempo – no Nordeste ou em Minas Gerais – e foram depois traficados internamente para o trabalho nas lavouras de café. De Maria do Céu quase nada se sabe, mas talvez se deva a ela o percentual queniano, possivelmente relacionado a escravizados traficados pela rota de Moçambique até o Rio de Janeiro para o trabalho nas já citadas lavouras de café.
Tudo isso ainda é uma suposição e depende de comprovação documental, que pode vir de testamentos dos senhores de escravizados da região, por exemplo. A pesquisa continua.
José Araújo é genealogista.
2 comentários
Angola – Genealogia Prática · 3 de outubro de 2022 às 07:30
[…] relação com povos de Angola, razão por que o relato acima parece ter algum fundamento, embora as complexidades do tráfico transatlântico não nos permitam fazer nenhuma afirmação […]
Mina – Genealogia Prática · 20 de novembro de 2022 às 06:40
[…] primeiro lugar, é necessário saber que o tráfico transatlântico teve quatro diferentes rotas desde a costa africana. A rota da Costa da Mina foi apenas uma delas, e seu porto de referência […]
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