As práticas de nomeação antigas podem hoje parecer confusas, mas elas obedeciam a um método: os filhos normalmente recebiam os sobrenomes de seus pais; as filhas, os de suas mães ou sobrenomes devocionais (da Conceição, de Jesus, do Amor Divino). Isso dizia respeito aos sobrenomes, mas haveria também costumes relacionados à atribuição de nomes de batismo? Haveria alguma lógica para explicar, por exemplo, os nomes na descendência imediata de meus duodecavós Domingos Nunes Sardinha e Maria da Cunha? Seus quatro filhos identificados foram batizados como Antônia Tavares de Oliveira, Domingos da Cunha, Duarte Nunes da Cunha e Maria da Cunha. O caso de Antônia parece curioso por conta de seu sobrenome composto e distinto dos de seus pais.
Segundo provas que apresento na obra Duarte Nunes o cristão-novo e sua descendência no Brasil, Domingos Nunes Sardinha era filho do cristão-novo Duarte Nunes e de sua esposa Maria Fernandes, cujas origens e filiações ainda são desconhecidas. Documentos encontrados no Arquivo da Torre do Tombo informam que Duarte e família viviam na Bahia nos idos de 1580 e deslocaram-se para o Rio de Janeiro na década seguinte, possivelmente em fuga da Inquisição. É no Rio de Janeiro que encontramos registros paroquiais relacionados à descendência de Duarte e Maria.
Por ser cristão-novo de origem portuguesa, Duarte era sefardita, denominação dada aos judeus de Península Ibérica. Sabe-se que os sefarditas tinham um costume de nomeação bastante peculiar. A lógica desse costume ditava que os filhos primogênitos do sexo masculino receberiam os nomes de seus avôs paternos. O filho seguinte receberia o nome de seu avô materno. A primeira filha receberia o nome de sua avó paterna. A filha seguinte, o de sua avó materna. Os filhos que viessem depois receberiam o nome do tio ou da tia paterna e finalmente do tio ou tia materna.
Para além da curiosidade, há nesse costume enorme valor preditivo para a pesquisa genealógica, pois, se conhecermos a ordem de nascimento dos filhos de um casal, poderemos deduzir a filiação do casal ainda que seja desconhecida. No caso em questão, os nomes dos pais de Maria da Cunha, mulher de Domingos Nunes Sardinha, ainda são desconhecidos. Talvez a análise dos nomes e datas de nascimento dos filhos do casal possa trazer pistas relevantes. É o que passamos a investigar.
Em 22 de abril de 1622, Duarte Nunes da Cunha prestou depoimento no processo de canonização do padre José de Anchieta, quando declarou ter “cerca de 26 anos de idade”, pelo que deduzimos que ele deve ter nascido em 1595, talvez antes. Dos quatro filhos conhecidos de Duarte Nunes Sardinha e Maria da Cunha, apenas este tem sua data de nascimento aproximada declarada em fonte documental. Os nascimentos dos outros três filhos terão de ser deduzidos por estimativa a partir de registros matrimoniais, entre outros, o que traz menos precisão ao exercício, mas não o invalida.
Maria da Cunha, a filha, casou-se em 14 de junho de 1616 com Antônio do Lago Prego. Considerando que uma jovem costumava se casar entre 14 e 20 anos, podemos supor que ela tenha nascido entre 1596 e 1602, muito provavelmente algo no meio dessa faixa. O registro matrimonial de Maria e Antônio informa que Domingos Nunes Sardinha, pai da noiva, era já falecido em junho de 1616. Isso tem importância preditiva para as análises seguintes.
Antônia Tavares de Oliveira teve dois filhos identificados com seu marido João Velho Prego. Madalena, a suposta primogênita, foi batizada em 1º de junho de 1650 e deve ter nascido dentro do mesmo ano, pelo que supomos que seus pais tenham se casado entre 1648 e 1649. Considerando o costume já citado, Antônia poderia ter nascido entre 1628 e 1634, mas, como seu pai faleceu antes de junho de 1616, deduzimos que ou Antônia demorou muito a engravidar, ou era viúva de um casamento anterior ainda desconhecido ou se casou mais velha. Tendo a seguir com esta última suposição.
Domingos da Cunha, finalmente, casou-se em 26 de julho de 1646 com a cristã-nova Ana da Costa, não teve filhos com ela e parece ter falecido logo depois, pois há registro de outro casamento de sua mulher por volta de 1650. Homens costumavam se casar a partir dos 20 anos e poderiam fazê-lo até bem mais tarde em relação às mulheres. Sendo assim, e considerando que seu pai era falecido em 1616, Domingos deve ter se casado com bem mais de 30 anos de idade.
Feitas as análises, temos uma estimativa muito aproximada das datas de nascimento dos filhos de Domingos Nunes Sardinha e Maria da Cunha, organizadas em ordem cronológica:
- Duarte Nunes da Cunha: antes de 1595
- Maria da Cunha: 1596 a 1602
- Domingos da Cunha: 1598 a 1606
- Antônia Tavares de Oliveira: 1603 a 1615
Parte das estimativas parece estar de acordo com o costume de nomeação sefardita, pois, se Duarte Nunes da Cunha foi mesmo o primogênito, ele recebeu o nome de seu avô paterno, o cristão-novo Duarte Nunes. Já Maria da Cunha, que deve ter sido a primeira filha, pode realmente ter recebido o nome de sua avó paterna, Maria Fernandes, mulher do cristão-novo Duarte Nunes.
É com os dois filhos seguintes que podemos levar em conta o valor preditivo da onomástica sefardita. Se Domingos da Cunha foi realmente o segundo filho homem do casal Domingos Nunes Sardinha e Maria da Cunha, ele teria recebido o nome de seu avô materno. Se Antônia Tavares de Oliveira foi a segunda filha do casal citado, ela deve ter recebido o nome de sua avó materna. Por essa interpretação, deduziríamos que Maria da Cunha, mulher de Domingos Nunes Sardinha, poderia ser filha de um Domingos Tavares de Oliveira e uma Antônia da Cunha ou de um Domingos da Cunha e uma Antônia Tavares de Oliveira. Essas hipóteses ainda precisam ser comprovadas.
José Araújo é genealogista.
2 comentários
Sangue – Genealogia Prática · 19 de dezembro de 2022 às 08:42
[…] Quando o depoimento foi tomado, Domingos, sua irmã Antônia Rodrigues Sardinha e seu pai Duarte Nunes já viviam no Rio de Janeiro, onde passaram incólumes à vigilância do Santo Ofício (leia sobre sua história aqui). Antônia Rodrigues Sardinha era viúva do também cristão-novo Rui Dias Bravo, com quem teve três filhos, dentre eles uma filha que recebeu o mesmo nome da avó paterna – Branca do Porto – como era costume entre os sefarditas. […]
Córdula – Genealogia Prática · 9 de janeiro de 2023 às 08:58
[…] Essa recorrência de pessoas recebendo nomes de avós (paternos ou maternos) é a evidência de um costume sefardita já descrito em texto anterior. Todos as pessoas nomeadas aqui eram […]
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