O resultado do último censo, realizado em 2022, apresenta alguns factos interessantes, como o aumento na proporção de pessoas que se autodeclararam pretas e amarelas e, em especial, o aumento absoluto da população que se autodeclara parda – 45,3%. Historicamente falando, desde os tempos coloniais o povo brasileiro foi mestiço e entre os séculos XVI e XIX houve superioridade numérica de pessoas de origem africana – pretas – e seus descendentes diretos. Sempre existiu, no entanto, o conceito de pardo, mas seu sentido mudou, e poucos brasileiros sabem disso.

A pessoa que hoje se autodeclara parda provavelmente reconhece que suas origens estão relacionadas à mestiçagem e também à cor da pele. Para outras, talvez a cor da pele fique em segundo plano em relação ao reconhecimento de uma origem familiar mestiça. Mas o conceito original de pardo tem relação íntima com a perversa economia do tráfico transatlântico de escravizados africanos de uma forma que ainda se desconhece de forma generalizada.

A escravidão é antiga na espécie humana e envolveu povos diversos, alguns mesmo de pele branca, como os eslavos, que eram escravizados pelos romanos. A associação específica entre escravidão e cor de pele – e especialmente a cor da pele negra – só começou a ocorrer a partir do século XV, quando a captura e escravização de africanos para venda na Europa e depois nas Américas se revelou um negócio altamente lucrativo.

Homens e mulheres jovens de diferentes origens étnicas e religiões foram capturados e levados até portos de embarque no litoral africano de onde partiram para uma viagem sem volta com destino aos centros de produção agrícola ou mineral onde foram tratados como mercadoria. Os primeiros a serem vitimados nessa economia eram registrados em documentos alfandegários como africanos ou pretos. Eles recebiam um nome cristão e um designativo do porto de onde haviam sido embarcados. Assim encontramos registros de pessoas nomeadas como Antonio Congo, Bento Mina e Maria Mocambique, para citar alguns exemplos.

Os primeiros descendentes desses africanos a nascer nas Américas receberam a designação de crioulos. É interessante saber que nos países de colonização espanhola essa designação era dada a todos os nascidos na colônia, não importando sua origem étnica, cor ou status social – cativo ou livre. Ser preto ou crioulo na américa lusitana não implicava uma mudança necessária de status, pois ambos certamente se mantinham presos à economia escravocrata.

A designação de pardo era a que fazia diferença. Uma criança identificada dessa forma provavelmente havia sido libertada na pia batismal pelo proprietário de sua mãe – portanto também seu proprietário – ou havia nascido do ventre de uma mulher já liberta. Os pardos adquiriam um status social que os distinguia socialmente a tal ponto que constituíam suas próprias irmandades religiosas, nas quais era vetada a entrada de pretos e crioulos. Ser pardo, portanto, significava ter transposto a barreira da escravidão para a liberdade, embora a sociedade colonial – e depois a republicana – continuasse a limitar a ascensão social de todos eles, com raras exceções.

Na transição do século XIX para o XX, o termo pardo provavelmente passou a ser relacionado apenas à cor da pele, especialmente após a assinatura da Lei Áurea em abril de 1888. Esse é o termo que encontrei em todos os registros de meus familiares maternos – mãe, avô, tios e tios-avós. Meu avo Enéas, por exemplo, nasceu um mês antes da assinatura da tal lei, mas certamente já nasceu liberto como seus irmãos mais velhos. Seu registro de óbito na década de 1970 ainda traz a observação de que era um homem pardo, da mesma forma como a trazia o documento de identidade de minha mãe, nascida na década de 1930.

Acredito que muitos dos que se declararam pardos no censo de 2022 tenham levado em consideracao bem mais que a cor da pele, ainda que desconhecessem a evolução histórica e social por que passou o termo que escolheram para distingui-los na sociedade brasileira e por que passaram os primeiros brasileiros a serem identificados dessa forma.


José Araújo é genealogista.


José Araújo

Genealogista