Aos vinte e oito dias do mês de julho de mil novecentos e dezoito, nesta cidade de Nova Iguaçu […] compareceu Adelino de Paiva Rocha e em presença das testemunhas abaixo assinadas declarou que no lugar denominado Nova Iguaçu […], no dia vinte e cinco do corrente mês e ano, às dezenove horas, nasceu uma criança do sexo masculino, de cor parda, filho legítimo de Enéas Pereira Belém e Durvalina Pereira Belém. […] Avós paternos João Pereira Belém e Theodora Maria Belém, digo, da Conceição. […] A criança chamar-se-á Rubens […]
O documento parcialmente transcrito acima trata do registro do nascimento de meu tio materno Rubens, com quem convivi durante toda minha infância e parte da minha vida adulta. Esse registro traz uma informação repetida nos registros de minha mãe e de todos os seus irmãos e que poderia passar sem alarde: a menção à cor da criança registrada – parda. Essa informação também pode ser encontrada nos registros de todos os sete irmãos de meu avô Enéas, como no se vê abaixo no assento de batismo de Pedro Pereira Belém (1879-1936).
No primeiro dia do mês de novembro de mil oitocentos e setenta e nove, nesta paroquial igreja de Nossa Senhora da Conceição de Bananal, batizei solenemente e pus os santos óleos ao inocente Pedro, pardo, fluminense, nascido em vinte e sete de junho do corrente ano, filho natural de Theodora Maria da Conceição, paroquiana desta freguesia. Foi padrinho Alexandre Pereira Belém, solteiro, e Nossa Senhora Protetora. Do que para constar fiz este assento que assino.
No ano em que Pedro nasceu, seus pais ainda não eram casados, por isso ele foi registrado como filho natural. O curioso é que o assento – bem como os de seus irmãos – informava apenas o nome de sua mãe. Suspeito que a ausência do nome paterno tivesse relação com o facto de meu bisavô João ser filho de Pedro Gomes de Moraes, um homem branco, escravocrata; e de minha bisavó Theodora ser filha de Maria Laurinda da Misericórdia, uma mulher que provavelmente foi escravizada. Apenas quando se casaram no regime civil, em novembro de 1900, meus bisavós João e Theodora reconheceram os oito filhos que haviam tido até então, entre eles meu tio-avô Pedro Pereira Belém.
O registro de batismo de meu tio-avô foi feito no Livro Terceiro, que abarca o período de 31 de julho de 1870 a 26 de fevereiro de 1886, e que, como se informa em sua abertura, “há de servir para nele se lançarem os assentos de batismo das crianças livres e libertas da freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Bananal, termo do Município de Itaguaí”. Pedro nasceu após a promulgação da Lei do Ventre Livre, de 28 de setembro de 1871, portanto é possível que seu registro nesse livro seja explicado por ela. De qualquer forma, o uso do termo pardo no contexto de seu batismo parece ter tido um significado diverso do que teria mais tarde, quando do nascimento de meu tio Rubens, como explicam os historiadores.
No século XVIII, por exemplo, havia no Rio de Janeiro o segmento dos pardos, pessoas afrodescendentes mais bem posicionadas socialmente, organizadas em confrarias religiosas de grande prestígio, que procuravam se distanciar dos negros, em especial os recém-chegados da África, e se aproximar dos brancos, dos libertos ou mesmos dos escravos crioulos, ou seja, nascidos no Brasil. A expressão “pardo”, que ainda hoje figura nas categorias censitárias do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), teve diferentes significados no Brasil colonial. No século XVII era usado [sic] em São Paulo para designar indígenas escravizados ilegalmente. Nas regiões produtoras de açúcar do Nordeste, era sinônimo de mulato, descendente de brancos e negros. Em Minas Gerais, significava também escravo alforriado ou homem liberto nascido no Brasil, independente de ser ou não mestiço. Os pardos não escravos no Rio de Janeiro eram também chamados de “mulatos de capote” e gozavam de importância social superior aos negros e cativos, entre outras razões por se vestirem como os europeus. […] Segundo a historiadora Hebe Maria Mattos de Castro, no Brasil escravista, a denominação “pardo” não indicava necessariamente uma cor específica de pele mais clara de mestiço, ou seja, uma nuance da cor do mulato. Sugeria, em vez disso, a fronteira entre cativeiro e liberdade. Todo escravo descendente de homem branco era chamado de pardo. Assim como todo negro nascido livre, fosse negro ou não. Havia filhos de africanos, negros, registrados como pardos. […] chamar alguém de “pardo” era o registro de uma diferenciação na hierarquia da sociedade colonial, assim como “crioulo” designava escravos negros nascidos no Brasil, enquanto “preto” se referia aos africanos. A classificação negro, por sua vez, hoje muito comum no Brasil, era mais rara e guardava, essa sim, um componente racial. _ Escravidão – Volume 2: Da corrida do ouro em Minas Gerais até a chegada da corte de dom João ao Brasil
Pedro Pereira Belém era mestiço, pois seu avô paterno era um homem branco e sua avó materna, uma mulher afrodescendente. Isso deve ter tido importância em sua identificação como uma criança não-branca, ainda que não mais sujeita ao regime escravista. Ao mesmo tempo, ele nasceu em uma nação ainda escravista, portanto não se pode desprezar que sua identificação como pardo pudesse estar relacionada ao facto de ele ter nascido no cruzamento da tal fronteira entre cativeiro e liberdade de que nos fala Hebe Mattos.
Quanto ao registro de meu tio Rubens, não podemos mais considerar a existência da tal fronteira cativeiro-liberdade, portanto sua identificação como pardo talvez diga respeito à memória de uma mestiçagem que acabaria por influir na vida de afrodescendentes como ele em relação às oportunidades que teriam de ascensão social pelo acesso à Educação e ao trabalho não-braçal.
José Araújo é genealogista.
2 comentários
Censo – Genealogia Prática · 1 de janeiro de 2024 às 06:01
[…] relacionado apenas à cor da pele, especialmente após a assinatura da Lei Áurea em abril de 1888. Esse é o termo que encontrei em todos os registros de meus familiares maternos – mãe, avô, tios e tios-avós. Meu avo Enéas, por exemplo, nasceu um mês antes da assinatura […]
Miscelânea – Genealogia Prática · 29 de julho de 2024 às 10:48
[…] 1. Haplogrupos mitocondriaisQuem já fez um teste de DNA com foco em genealogia pode ter dúvida sobre o significado e a relevância do haplogrupo mitocondrial. Vamos começar com o significado: esse haplogrupo indica a origem geográfica aproximada da antepassada mais remota, ou seja, a mulher mais antiga de quem descendem você, sua mãe, sua avó, sua bisavó, sua trisavó e assim por diante, sempre na linha ascendente feminina. Mas qual a relevância de saber isso? Se você é brasileiro(a), precisa saber que os haplogrupos mitocondriais não europeus mais frequentes na população brasileira são os da sequência A, B, C, D, que remetem principalmente a uma herança indígena; e L1, L2 e L3, que remetem a uma herança africana. Ter um desses haplogrupos identificados no teste de DNA abre possibilidades de uma pesquisa documental que alcance os primórdios da ocupação do Brasil, portanto de construção de uma árvore genealógica bem vasta. Isso é bem significativo para quem tem origem familiar no Nordeste, por exemplo, pois existe farta documentação histórica e de cunho genealógico sobre essa região. A única e frequente dificuldade está na identificação da paternidade de filhos naturais de mulheres escravizadas ou indígenas, pois nesses casos é preciso contar com a sorte de encontrar um documento de reconhecimento de paternidade, que pode estar no testamento do pai ou em uma carta d…. […]
Os comentários estão fechados.