A pesquisa genealógica exige a busca e a exploração meticulosa de diversas fontes de informação. Mas não se deve acreditar que uma fonte possa ser explorada apenas uma vez, sem revisitas. Mesmo fontes já conhecidas podem revelar algo novo a partir do confronto com fontes recém-descobertas. O caso que relato aqui diz respeito a uma fonte – bastante sucinta, por sinal – que nem é tão antiga em meu acervo genealógico, mas que tenho revisitado com alguma frequência por ter relação com um ramo de ascendentes sobre os quais não há muitos documentos disponíveis ou mesmo conhecidos.
Esse ramo é o núcleo familiar do cristão-novo Gaspar Cordeiro, filho do português Antão Delgado Aires, supostamente cristão-velho, e da cristã-nova baiana Branca de Peralta. Gaspar nasceu na Bahia e sabemos que ele tinha 24 anos quando seu pai faleceu. Sabemos também que em algum momento da vida adulta ele saiu da Bahia e se estabeleceu no Rio de Janeiro com seus filhos legítimos, dos quais temos conhecimento de dois – Tomás Cordeiro de Peralta e Antônio de Peralta – , e talvez com duas filhas naturais afrodescendentes e forras que são citadas em seu testamento, que transcrevo abaixo.
Aos trinta e um de março de mil seiscentos e setenta e três faleceu Gaspar Cordeiro. Recebeu os sacramentos [e] fez seu testamento e nele pedia à santa Irmandade da Misericórdia, [de] que fora muitos anos irmão, que o enterrassem pelo amor de Deus […] a venerável Ordem Terceira do Carmo da qual era terceiro e assim foi sepultado na dita Igreja do Carmo, amortalhado no mesmo hábito. Acompanharam seu corpo o seu pároco com seus clérigos e os religiosos do Carmo. Nomeou por seus testamenteiros a seu filho Tomás Cordeiro e Antão Cosme, aos quais pedia fizessem bem por sua alma. // Declarou que tinha em sua casa uma negra por nome Mariana a qual era forra e por tal a trouxera da Bahia, da qual [tivera] uma filha à qual deixava por esmola o enxoval de [Crisma?] e roupa e tudo mais que se achar. // Declarou mais que tinha outra filha mulata por nome Marcelina, a qual é livre e forra por carta que lhe dera. // Declarou que dois mulatos que ficaram forros um forrara por ser seu neto e outro que o forrou […] de serviços que a seu pai […] e não continha mais quanto ao pio. De que fiz este assento.
Toda a documentação que temos sobre Gaspar está no inventário de seu pai e em seu próprio testamento. Interessante que em nenhum lugar se fala da mulher com quem ele teve seus dois filhos legítimos conhecidos. Ele já poderia ser casado quando seu pai faleceu, pois tinha já 24 anos, mas sua mãe não faz referência a isso, embora tenha feito em relação a sua meia irmã Felipa e a sua irmã inteira Ana, conforme lemos na transcrição do inventário que se apresenta a seguir.
AIRES, CORDEIROS, DELGADOS
Antão Delgado Aires, natural do reino, casado no Porto com F. de Cárdiga, da qual tinha filhos e veio para a Bahia com alguns da dita mulher. E não se acha ao certo se já era viúvo. E só que na Bahia casou segunda vez com Branca de Peralta, da qual teve também vários filhos, como consta do inventário, que por sua morte fez a dita sua segunda mulher Branca de Peralta, no qual inventário se nomeiam onze, que são os seguintes:
Da primeira mulher foram:
- Antônio Cordeiro Aires, que se segue;
- Felipa de Cárdiga, que casou e faleceu ainda em vida de seu pai e deixou filhos;
- Jerônimo de Cárdiga;
- Manoel Delgado.
Da segunda mulher foram:
- Jerônimo Aires;
- D. Ana, casada com Simão Barbosa;
- D. Maria Cordeiro, de idade de 28 anos;
- Gaspar Cordeiro, de idade de 24 anos;
- Francisco Cordeiro, de idade de 22 anos;
- Antão Delgado, de idade de 17 anos;
- Isabel, de idade de 5 anos.
Suponho que Gaspar tenha se casado com mais de 24 anos. Em seu testamento, ele não revela ser casado ou viúvo e tampouco foi encontrado algum óbito referente a mulher que tivesse sido casada com ele. As únicas sugestões de quem pode ter sido a mulher de Gaspar Cordeiro encontradas até o momento estão nos registros de casamento e óbito de Antônio de Peralta, em que ele informa ser “filho de Gaspar Cordeiro e de Maria de Peralta“, o que sugere um parentesco entre seus pais. Em seu óbito, Antônio revela ser natural da Cidade da Bahia, o que talvez signifique que ele tenha nascido em Salvador. Se Antônio for mesmo filho de Gaspar Cordeiro, e este foi casado com Maria de Peralta, talvez ela tenha falecido na Bahia e Gaspar, já viúvo, tenha se transferido para o Rio de Janeiro. Repito: “Se Antônio for mesmo filho de Gaspar”. Mas como saber?
A revisita a um trecho que transcrevi de um longo processo de genere et moribus encontrado no Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro (Caixa 439, Not. 1585) talvez possa ajudar a saber a verdade sobre a filiação de Antônio de Peralta. Nesse processo, várias testemunhas que conheciam a família do fluminense Gaspar de Peralta Ramos – ex-seminarista na Bahia e candidato às ordens menores – depuseram para declarar que ele tinha sangue puro, ou seja, não descendia de judeus, mouros ou africanos, condição para obter ordenação. Duas testemunhas, no entanto, disseram algo diverso: o candidato tinha, sim, sangue impuro porque certo Gaspar Cordeiro, de quem o candidato devia descender, havia se casado com a filha de uma mulher de nome Maria que tinha fama de cristã-nova, isto é, judia convertida, e fora casada em Angola com um homem da família Bravo, de reconhecida origem judaica.
E agora a evidência que saltou diante dos meus olhos após mais uma revisita ao curto trecho que transcrevi do longo processo de genere de Gaspar de Peralta Ramos:
Gaspar de Azedias Machado, natural e batizado na freguesia de Inhaúma […] somente uns Peraltas, filhos de Gaspar Cordeiro, o qual casou com uma mulher, filha de uma Dona Maria, viúva de Angola, a qual padecia nota de cristã-nova e desta sorte ficaram infectos os filhos do dito Gaspar Cordeiro, pois querendo [meter] um filho […] religioso em Santo Antônio, convidou para lhe jurar nas inquirições João Batista Coelho, já defunto, o qual totalmente repugnou […] pois muito bem conhecia a mácula de seus filhos [a qual] assim não queria jurar falso, pois tinha ido a Angola e lá sabia e conhecia a nota que padecia a dita Dona Maria, cuja nota muito bem conheceu também Luzia de Albernaz, a qual sendo também convidada para o sobredito efeito, da mesma forma repugnou […]
A testemunha Gaspar de Azedias, pelo que lemos acima, se lembrava de que fazia algum tempo Gaspar Cordeiro quis ter um filho como religioso do convento de Santo Antônio, mas para isso precisava que testemunhassem a favor do rapaz informando da pureza de sangue de sua família. Duas testemunhas que ele convidou – João Batista Coelho e Luzia de Albernaz – declinaram por saber do sangue cristão-novo que existia na família de Gaspar Cordeiro por conta do casamento deste com uma mulher infamada de cristã-nova.
Sabemos que Gaspar Cordeiro era ele mesmo ao menos meio cristão-novo por parte de sua mãe Branca de Peralta, pelo que seu casamento com uma mulher de mesma origem e ainda mais sua parente não seria estranho, afinal a endogamia era muito frequente dentro dessa comunidade. Ao mesmo tempo, parece interessante que Gaspar tivesse um filho batizado como Antônio e que quisesse ter um filho feito religioso no convento do santo homônimo. Talvez Antônio de Peralta tenha sido esse filho a favor de quem não quiseram depor João Batista Coelho e Luzia de Albernaz. Essa interpretação segue como possibilidade.
Para conhecer a ascendência de Gaspar Cordeiro, leia Mestre Afonso Mendes: o cristão-novo.
José Araújo é genealogista.