Em texto anterior, tratei da apresentação das famílias nas quais poderiam ser identificados candidatos viáveis para responder pela paternidade de minha sexta-avó Firmiana Maria Xavier, filha de Ana Maria Xavier, mulher solteira identificada como parda livre. Ao fim da análise, em que explorei principalmente as identidades dos padrinhos de batismo de Firmiana, sugeri que o pai dela poderia pertencer a uma de duas famílias de senhores de engenho na freguesia de Santo Antônio de Jacutinga, Rio de Janeiro, no século XVIII: a dos Correa Vasques, sobre a qual tratei naquele texto; ou a dos Sanches de Castilho, sobre a qual trato neste texto.
A família Sanches de Castilho surge como potencial candidata porque Dona Inácia Francisca de Castilho, madrinha de Firmiana, foi filha do sargento-mor Francisco Sanches de Castilho e teve irmãos que poderiam ter se relacionado com Ana Maria Xavier, a mãe de Firmiana. Identificamos esses irmãos no testamento de Inácia Maria Tavares, mãe de Inácia Francisca, que faleceu em 14 de outubro de 1786. O testamento está transcrito em seu assento de óbito, no qual lemos o seguinte trecho:
[…] Declaro que fui casada com o sargento-mor Francisco Gomes, digo, Sanches de Castilho, de cujo matrimônio tivemos quatro (sic) filhos: Dona Ana, Inácio, Dona Úrsula, Dona Dorotea e Dona Inácia […]
Na verdade, houve mais um filho além dos cinco (não quatro) nomeados, que foi batizado como Jerônimo em 2 de janeiro de 1742, mas ele não foi citado no testamento materno, portanto creio que fosse já falecido em 1786. Como seu óbito não foi encontrado, não podemos assegurar que ele não tenha falecido na juventude. Dessa forma, haveria dois filhos do sargento-mor Francisco que poderiam responder pela paternidade de Firmiana: Jerônimo, de quem nada mais sabemos; e Inácio Sanches de Castilho, citado no óbito materno. Este tinha 32 anos em janeiro de 1776, quando Firmiana nasceu, sendo até mais jovem do que o capitão Manoel Correa Vasques, outro candidato a pai de Firmiana, que tinha 48 anos na época.
Mas o testamento de Dona Inácia Maria Tavares menciona um outro homem de sobrenome Sanches que não era filho dela: o afilhado Francisco José Sanches, que ela nomeia por seu testamenteiro, procurador e administrador de todos seus bens junto com seus filhos Inácia de Castilho e Inácio Sanches de Castilho. Não foram encontrados registros sobre esse afilhado de Dona Inácia Maria, mas Jerônimo, Inácio e Francisco José, na ausência de mais candidatos nessa família, surgem como potenciais pais de Firmiana. Mas o que mais indica que o pai de minha sexta-avó pudesse ser um membro dessa família da elite local? Há várias evidências nesse sentido, portanto vamos analisar cada uma delas detidamente.
Comecemos pela primeira, Dona Inácia Francisca, a madrinha de batismo, que foi por onde tivemos a primeira pista de um pai entre os Sanches de Castilho. Fiz um levantamento de quantas mais crianças foram apadrinhadas por ela, e foi interessante descobrir que entre 1782 e 1820, portanto após o apadrinhamento de Firmiana em 1776, houve apenas mais um caso entre as 33 crianças que foram identificadas como filhas de escravizadas dessa mulher e foi justamente um batismo em que foi padrinho seu irmão, o alferes Inácio Sanches. Talvez o fato de minha sexta-avó ter sido filha de um dos irmãos de Inácia Francisca pudesse explicar essa quebra de padrão ao batizar a menina parda nascida em sua propriedade – possibilidade que apresentarei adiante. É apenas mais uma hipótese de trabalho, preciso deixar claro desde já, mas é esperado que a genealogia de pessoas afrodescendentes, frente à escassez de documentos, tenha de recorrer a várias delas.
Durante o levantamento citado, encontrei o assento de batismo da menina Francisca, crioula, batizada em 1800, no qual se declara que seu padrinho, um Manoel Correa Vasques, estava “casado com Dona Francisca Inácia”. Visto que no mapa da freguesia de Jacutinga o capitão Manoel Correa Vasques foi descrito como solteiro em julho de 1797, imaginei que poderia ser outra pessoa e, de facto, tratava-se de um neto do doutor Manoel Correa Vasques por sua filha Inês Correa de Jesus. A revelação desse sobrinho homônimo do capitão Manoel Correa Vasques se deu com a descoberta do assento de batismo da menina Inês, datado de 27 de outubro de 1790. Nesse registro, visto abaixo, se declara que a menina era filha de Maria Rosa, “parda, solteira, escrava de Dona Inácia Francisca de Castilho” e que seus padrinhos foram “o reverendo José Vasques de Sousa e sua mãe Inês Correa de Jesus“, que foi madrinha “por sua procuração que fez a seu filho Manoel Correa Vasques“.
Das 33 crianças batizadas cujas mães eram escravizadas pertencentes a Dona Inácia Francisca, onze tiveram por padrinhos o padre José Vasques de Sousa e sua mãe Inês Correa de Jesus, o que atestaria de outra forma uma relação muito próxima entre as famílias. Inácia Francisca, agora sabemos, apadrinhara Firmiana com o poderoso tio de seu futuro marido, o qual era um homem de ascendência africana e irmão do padre José Vasques de Souza, de quem tratamos no texto anterior. A aparente inconsistência de nomes – Inácia Francisca vs. Francisca Inácia – provavelmente se deveu a uma confusão do pároco, pois a sogra de Inácia Francisca também ora aparece nos documentos como Inês Correa de Jesus e ora como Inês de Jesus Correa. Passemos, então, ao segundo grupo de evidências em favor da família de Inácia Francisca como origem do pai de Firmiana.
Essas novas evidências têm relação com a família de Manoel Veloso de Carvalho, o homem com quem Firmiana Maria Xavier se casou na freguesia de Jacutinga em outubro de 1794. Manoel foi um homem pardo que nasceu escravizado e foi libertado pelo pai Miguel Veloso de Carvalho quando tinha apenas cinco anos de idade. Miguel foi um homem branco que teve o filho Manoel quando ainda era solteiro e com uma escravizada que pertencera a sua mãe e era conhecida como Maria de nação Angola. Parece ter havido uma relação muito próxima entre os Veloso de Carvalho e os Sanches de Castilho – tanto brancos quanto pardos – , pois no levantamento que fiz dos filhos das escravizadas de Dona Inácia Francisca batizadas entre 1782 e 1820 encontrei o registro que transcrevo a seguir.
Aos nove dias do mês de julho de mil oitocentos e seis anos, nesta freguesia de Santo Antônio de Jacutinga, batizei e pus os santos óleos em Mariana, parda, nascida aos vinte e sete de junho da era supra, filha de Inês, parda solteira, escrava de Dona Inácia Francisca de Castilho. Foi padrinho Manoel Veloso de Carvalho e, por devoção, Nossa Senhora. De que fiz este assento.
O então já marido de Firmiana, portanto, apadrinhou a filha de uma escravizada da madrinha de batismo de sua mulher. Infelizmente, o assento matrimonial de Firmiana e Manoel não foi encontrado devido à falta de livros paroquiais da freguesia de Jacutinga, mas não seria improvável que o casal tivesse tido por testemunha no casamento um membro da família Sanches de Castilho. Existe ainda uma prova que atesta a relação entre os Veloso de Carvalho e os Sanches de Castilho: o sogro de Firmiana foi sepultado na casa do sargento-mor Francisco Sanches de Castilho, pai de Inácia Francisca, como se lê no assento de óbito exibido abaixo e transcrito a seguir.
Aos trinta e um dias do mês de agosto de mil oitocentos e oito anos, em casa do sargento-mor Francisco Sanches de Castilho, nesta freguesia de Santo Antônio de Jacutinga, foi sepultado Miguel Veloso, com todos os sacramentos, de idade de setenta anos. Foi envolto em pano branco, encomendado pelo reveerendo vigário Mariano José de Mendonça. Do que fiz este assento.
As evidências são cumulativas e parecem indicar que Dona Inácia Francisca Sanches de Castilho, nascida em uma família da elite local – depois esposa de um representante de outra família dessa mesma elite e proprietária de um significativo plantel de escravizados – não apadrinhou Firmiana por acaso, pois ela não parecia ter o costume de favorecer os filhos de suas (ex-)escravizadas. Eu arriscaria a interpretação de que Firmiana nascera nas propriedades da família Sanches de Castilho e, por ser identificada no casamento como parda forra, nascera da relação entre a também parda forra Ana Maria Xavier e um homem branco que pode ter sido um parente de Inácia Francisca.
A evidente familiaridade entre os Veloso de Carvalho e os Sanches de Castilho – atestada pelos registros de batismo e de óbito exibidos pouco acima – sugere ainda que Firmiana e Manoel Veloso de Carvalho tenham convivido e se conhecido nas propriedades da família de Dona Inácia. O casal teve cinco filhos já identificados – Preciosa, Francisco, Renovato, Manoel e Justina – , dos quais Francisco e Manoel faleceram ainda na infância. Era costume batizar os filhos com os nomes dos avós, mas esses nomes não existiram na ascendência imediata de Manoel Veloso, o pai deles. O nome de Francisco, no entanto, seria encontrado na ascendência dos Sanches de Castilho, pois o pai de Inácia Francisca, Jerônimo e Inácio foi o sargento-mor Francisco Sanches de Castilho. Seria essa mais uma evidência de que Jerônimo – ou seu irmão Inácio – Sanches de Castilho foi o misterioso pai de Firmiana, portanto avô materno das crianças?
A busca continua.
José Araújo é genealogista.