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Neste segundo texto da série que dediquei à proposta de uma Genealogia que recrie a vida cotidiana dos antepassados, tratarei de aspectos de que muitas vezes não se encontram referências: os elementos que compunham o ambiente doméstico dessas pessoas – suas residências e mobiliário – e a forma como elas se apresentavam na vida privada e pública – sua indumentária. Pretendo tratar desses elementos em relação à vida cotidiana de Ana de Oliveira, filha de Afonso Mendes, cirurgião-mor da corte portuguesa que chegara com a família a Salvador em 1557 acompanhando o governador-geral Mem de Sá e lá foi denunciado 34 anos depois pela prática de costumes judaicos.

Para um período tão remoto existem muito poucas fontes documentais que nos informem como eram os costumes no Brasil. Os relatos mais conhecidos são o do soldado alemão Hans Staden (c. 1525 – c. 1576), que caiu prisioneiro dos indígenas no litoral de São Paulo e sobreviveu para escrever sua experiência, e os dos padres da Companhia de Jesus, que vieram para a colônia com a missão de catequizar os indígenas. Aqui nos interessam os relatos dos jesuítas e mais especificamente o do padre Fernão Cardim (1540-1625), autor dos Tratados da terra e gente do Brasil, obra que reúne textos escritos entre 1583 e 1601 e pelos quais temos conhecimento das atividades econômicas das capitanias que existiam entre Pernambuco e São Vicente e dos costumes dos colonos e dos indígenas.

Graças à obra do padre e a estudos de pesquisadores contemporâneos, podemos montar um quadro que sugere como seria o lar de Ana de Oliveira, de seu marido Gaspar de Vila Corte de Peralta, médico natural de Biscaia, no País Basco, e dos filhos do casal. Depoimentos prestados contra sua família ao Santo Ofício revelam que Ana viveu em Paripe, vila localizada a alguns quilômentros de Salvador, que era então a sede da capitania e de toda a colônia portuguesa. As residências dessa vila deveriam ter características similares às de tantas outras observadas pelo padre Cardim, que sobre a vida no Brasil escreveu o que se lê a seguir (p. 104) em linguagem atualizada.

Este Brasil é já outro Portugal, e não falando no clima que é muito mais temperado e sadio, sem calmas grandes, nem frios, e donde os homens vivem muito com poucas doenças, como de cólica, fígado, cabeça, peitos, sarna, nem outras enfermidades de Portugal; nem falando do mar que tem muito pescado e sadio; nem das coisas da terra que Deus cá deu a esta nação; nem das outras comodidades muitas que os homens têm para viverem, e passarem a vida, ainda que as comodidades das casas não são muitas por serem as mais delas de taipa e palha, ainda que já se vão fazendo edifícios de pedra e cal e telha.

A taipa era uma técnica construtiva que usava materiais como barro, água, fibras vegetais e um aglomerante – estrume ou sangue de animal – e que eram apiloados em uma forma de madeira. Essa técnica produzia moradias de baixo custo, por serem materiais de fácil obtenção, mas elas se revelavam vulneráveis à água e exigiam muita mão de obra. Em vilas como Salvador, no momento em que Mestre Afonso desembarcou, já deveria haver construções mais perenes de pedra, cal e telha, que também poderiam ser encontradas em vilas como São Vicente. Já em uma localidade mais afastada como Paripe, não é improvável que Ana de Oliveira e sua família vivessem em uma morada mais simples de taipa e palha.

No interior dessa morada, poderíamos encontrar alguns poucos cômodos, dentre os quais se destacariam as alcovas, nas quais era costumeiro encontrar oratórios onde os moradores faziam suas rezas. Se foram verídicas as acusações que o visitador Heitor Furtado de Mendonça recebeu contra a família de mestre Afonso, talvez não houvesse uso para oratórios católicos na morada do médico Vila Corte de Peralta, afinal eles seriam cristãos-novos judaizantes. Outro cômodo importante numa morada daquela época era a área destinada à preparação dos alimentos, que deveria ficar próximo de uma abertura para evitar que a fumaça e o calor ficassem retidos nos cômodos interiores.

O conforto na morada de Ana de Oliveira deveria ser mínimo, talvez contando a família com bancos, tamboretes e estrados em substituição às cadeiras. No cenário mais humilde, eles se sentariam em redes produzidas domesticamente com fibras como o algodão. Redes e esteiras, apropriadas das culturas indígenas, serviam também de leito, pois as camas que conhecemos hoje só se tornariam parte do mobiliário colonial bem mais tarde. Baús de vários tamanhos cumpriam a função de armazenar roupas, joias e outros objetos.

Os colonos na verdade não davam tanto valor ao conforto no interior de suas moradas, pois era pela fatura de sua mesa – qualidade e variedade dos alimentos consumidos – e pelo cargo ocupado na administração colonial que se media a riqueza de uma família. Também a indumentária tinha importância para a avaliação da condição social de um colono, por isso interessa saber como se vestiam os Vila Corte de Peralta. Aqui recorremos novamente ao relato do padre Cardim, que parece apresentar um quadro favorável para que nossos personagens ostentassem publicamente sua condição social, como lemos em mais este trecho.

Nem as comodidades para o vestido não são muitas, por a terra não dar outro pano mais que de algodão. E nesta parte padecem muito os da terra, principalmente do Rio de Janeiro até São Vicente, por falta de navios que tragam mercadorias e panos; porém as mais capitanias são servidas de todo gênero de panos e sedas, e andam os homens bem vestidos, e rasgam muitas sedas e veludos.

Como Portugal proibia a existência de indústria que não fosse a de produção do açúcar e talvez de tecidos brutos, os colonos da maior parte das capitanias dependiam da chegada de itens fabris mais nobres produzidos em outros domínios lusos e trazidos de navio. Pelo relato do padre Cardim, imaginamos que a capitania da Bahia não teria problemas para receber essa mercadoria importada, e que a proximidade entre Paripe e a capital Salvador facilitaria a aquisição de trajes e acessórios mais requintados. Assim, imagino que a família de Ana pudesse se apresentar com algum luxo em eventos sociais como missas, batizados e casamentos na vila onde habitava.

Na vida doméstica, no entanto, sua família deveria usar trajes mais confortáveis para o clima quente da Bahia. Sabe-se de relatos de séculos posteriores que em casa os homens vestiam camisas largas de linho ou algodão e às vezes andavam descalços ou com chinelos, enquanto as mulheres usavam vestidos simples e longos, geralmente feitos de algodão ou tecidos leves. A gravura abaixo, embora ilustre um costume do século XIX, talvez dê uma ideia de como seria essa indumentária feminina mais confortável para o dia a dia no lar.

Uma senhora de algumas posses em sua casa – Debret (1823)

Cabe fornecer um exemplo prático que desse conta de ilustrar o quadro que se compôs até aqui com as fontes disponíveis. O exemplo que sugiro é o filme brasileiro As Órfãs da Rainha, dirigido por Elza Cataldo. Esse filme é ambientado exatamente nas décadas que nos interessam e narra a vinda para a Bahia de três irmãs solteiras que foram criadas sob a proteção da rainha de Portugal por razão que não explico para não revelar um detalhe importante do enredo. O envio de jovens brancas e órfãs com dotes para se casar com os colonos era uma estratégia da coroa para evitar que esses homens tivessem filhos mestiços com mulheres indígenas e africanas.

A seguir exibo um trailer do filme que, pela extensa pesquisa histórica feita antes das filmagens, considero recomendado no contexto da proposta que desenvolvi neste texto e no anterior.

Trailer de As Órfãs da Rainha

O exercício apresentado aqui foi especialmente difícil por causa da escassez de fontes primárias que informem sobre a vida no Brasil colonial no séculos XVI e XVII. Para os séculos seguintes, especialmente para o XIX, devido à maior facilidade para entrada de visitantes estrangeiros no território brasileiro, a quantidade de fontes, tanto textuais quando imagéticas, é muito maior, o que contribui sobremaneira para a proposta de recriação da ambiência em que viveram os antepassados.

Como sugestão adicional para a compreensão de como se apresentavam nossos antepassados nos séculos anteriores, recomendo o canal do YouTube A Modista do Desterro, mantido pela historiadora Pauline Kisner.


José Araújo é genealogista.


José Araújo

Genealogista