No texto anterior, abordei o quão importante é para o genealogista fazer perguntas e não se satisfazer (naturalizar) com o que os fatos e os documentos lhe apresentam quando apenas sinalizam um caminho sem saída. Aqui faço outra afirmação relevante: o genealogista precisa seguir a trilha informacional. Óbvio, não é? Bem, não necessariamente, pois quem espera encontrar documentos com informações corretas e completas pode estar fadado ao fracasso. Quanto mais se avança pelos séculos passados, maiores são as chances de encontrar documentos com dados truncados ou incompletos. Daí a importância de aprender a seguir a trilha das informações.
Como no texto anterior, passo a usar um exemplo de minha pesquisa, na qual descobri um ramo afrodescendente que se iniciou no Brasil com um homem chamado Estêvão Gonçalves Dias. A primeira evidência que encontrei sobre sua existência surgiu no assento de batismo de minha hexavó Felizarda Maria, nascida em 1775 na freguesia carioca de Nossa Senhora do Desterro. O documento informa que a batizanda era filha legítima do português José Vieira e da brasileira Teresa de Jesus, e por sua mãe era neta de “Estêvão Gonçalves, preto forro, e Mariana de Souza”, que viveram no chamado “lugar do Viegas”, onde hoje funciona o Ecomuseu Fazenda Viegas. Pela forma como ele foi descrito, descobri que Estêvão nascera na África (preto) e fora escravizado e depois liberto (forro).
O assento de batismo de Teresa, minha heptavó, também foi localizado e nele se lê que a menina, batizada na mesma freguesia do Desterro em 1747, era “crioula, filha legítima de Estêvão Gonçalves, crioulo, e sua mulher Mariana de Souza, crioula, escravos que foram de Roque Gonçalves”. Aqui se introduzem dois fatos coerentes: Teresa era crioula porque era assim que se descreviam os filhos de africanos nascidos no Brasil, e seus pais realmente haviam sido escravizados e depois alforriados, havendo mesmo menção ao nome do antigo proprietário, de quem Estêvão adotou o sobrenome Gonçalves. Mas havia uma incoerência: Estêvão e Mariana, por serem africanos, não seriam normalmente descritos como crioulos. Mais correto seria usar a forma pretos, como no registro de Felizarda acima.

Essa discrepância teria de ser confrontada com outras evidências a fim de assegurar que não houvesse sido interrompida a trilha informacional. Apesar dela, eu ainda acreditava que se tratasse das mesmas pessoas, pois os nomes dos pais, a freguesia e o período eram os mesmos. A evidência seguinte que atestava a coerência na interpretação de uma origem africana para Estêvão foi encontrada no registro de batismo de Antônia, outra filha que ele teve com Mariana, batizada em 1742 na freguesia do Desterro. Nesse registro se informa que a menina era “filha legítima de Estêvão Gonçalves, preto forro, e de sua mulher Mariana de Souza”. Faz sentido, portanto, deduzir que a menção aos pais de Teresa serem crioulos havia sido um equívoco. Eles eram mesmo pretos, ou seja, africanos.
Estêvão e Mariana tiveram mais oito filhos, todos batizados na freguesia do Desterro, entre 1749 e 1769: Manoel, Eugênia, José, Joaquim, João, Maria, Jerônimo e Silvestre. Nos assentos de batismo de alguns desses outros filhos encontramos mais evidências: os de Manoel (1749), Eugênia (1750), João (1759) e Jerônimo (1766) reiteram que Estêvão e Mariana eram “pretos forros”; o de José (1752) informa que seus pais foram escravos de Roque Gonçalves “e hoje são forros”; o de Joaquim (1754) vai além e, depois de confirmar que seus pais eram forros, informa que eles eram “ambos […] do gentio de Guiné”, que era como se descrevia uma origem africana na época; o de Maria (1763) nada informa sobre a origem ou situação de seus pais; e o de Jerônimo não foi encontrado.
Apesar da incoerência (pretos x crioulos) e das pequenas inconsistências nas declarações dos párocos, estou bem tranquilo para afirmar que, em todos os casos, se trata das mesmas pessoas e que posso concluir que esse meu ramo ascendente é africano de origem. Por outras fontes, descobri ainda que Estêvão teve um ofício que pode ter contribuído para sua liberdade e a de sua mulher, mas essa possibilidade ainda segue como hipótese. E descobri também que, como era comum às pessoas livres em seu tempo, Estêvão teve escravizados, que podem ter sido sua fonte de sustento. Conto sua história na obra Memórias Restituídas: Maria Angola e Estêvão da Guiné.
José Araújo é genealogista.