Em dois de julho de mil seiscentos e oitenta e dois, recebi nesta igreja, na forma do sagrado concílio tridentino e constituições a Diogo Domingues, filho de Antônio Machado de Barcelos e de sua mulher Bárbara Nunes, com Susana de Lima, filha de Pedro [Gonçalves] e de sua mulher Juliana das Neves. Assistiram-lhes João Veloso de Carvalho, Roque de Barcelos e outras […]
Esse assento matrimonial foi encontrado quando eu pesquisava sobre os Munizes Barretos na busca da filiação de meu decavô materno Miguel Veloso de Carvalho (1682-1760). Após muita análise, concluí que Miguel era filho de João Veloso de Carvalho e de uma filha ainda não identificada do casal Fernando Muniz Barreto (1622-?) e Maria Machado (1640-1705), esta última filha do casal Antônio Machado de Barcelos e Bárbara Nunes. No assento transcrito acima, o noivo Diogo Domigues era mais um filho desse casal, portanto irmão de Maria Machado. Como se percebe, quatro das pessoas nomeadas no assento acima tinham vínculo de parentesco. E aí se percebe mais um nome – Roque de Barcelos – que tem o mesmo sobrenome do pai do noivo. A curiosidade me fez ir à busca de mais informações sobre esse homem, e o que descobri foi muito recompensador.
Roque era já conhecido do mestre Carlos Rheingantz (1915-1988), que a ele dedicou um título familiar de sua obra sobre as primeiras famílias do Rio de Janeiro. É desse título o trecho que lemos a seguir.

Como se vê, o mestre ignorava a origem e a idade exata de Roque, tendo-lhe atribuído um ano aproximado de nascimento – 1633 – a partir da data de batismo de Maria, primeira filha do casamento dele com Ana Correia. Por sorte, Roque foi testemunha em dois processos matrimoniais resumidos no livro de Dalmiro da Motta Buys de Barros sobre os processos de banhos do bispado do Rio de Janeiro disponíveis no Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro. No primeiro processo, de 1680, Roque foi fiador dos banhos de sua cunhada Luíza Correa, quando declarou ser natural e morador na cidade do Rio de Janeiro. No segundo processo, cinco anos depois, ele foi testemunha dos banhos de Apolinário da Costa e Isabel de Mendonça, ocasião em que declarou ter 56 anos. Sendo assim, sabemos que Roque era carioca e deve ter nascido em 1629, mas quem seriam seus pais? E teria ele algum parentesco com Antônio Machado de Barcelos?
Vimos que toda a descendência de Roque e Ana Correia foi identificada pelo mestre Rheingantz, mas um filho mereceu mais atenção depois que encontrei, no Banco de Dados da Estrutura Fundiária do Recôncavo da Guanabara (1635-1770), compilado por Maurício de Abreu, a seguinte escritura de doação feita em 1701 por Ana Correia, então já viúva de Roque:
Escriturada de doação de uma morada de casas para instituição de patrimônio que faz Ana Correia, viúva de Roque de Barcelos Machado, a seu filho Licenciado Luiz de Barcelos Machado, para ordenar-se sacerdote do hábito de São Pedro – térrea, de taipa de mão, coberta de telhas, … sita na rua dos Quartéis, em que de presente vive
Segundo esse registro, o filho Luiz, que Rheingantz nos informa ter sido batizado em setembro de 1666, quando adulto usava o sobrenome Barcelos Machado, era já licenciado e desejava ordenar-se sacerdote. Isso abriu a possibilidade de encontrar um processo de genere et moribus, pelo qual se investigavam a família e os costumes do candidato na tentativa de eliminar a existência de algo que naquela época se considerava desabonador, como um antepassado mouro (muçulmano), africano ou judeu (cristão-novo), a prática de algum ofício mecânico ou a culpa por algum crime. Fiz uma consulta ao já citado Arquivo da Cúria Metropolitana, que conseguiu localizar o processo 1775 – caixa 00455 – , que pude consultar para tentar saber mais sobre a ascendência de Luiz.
O processo encontra-se um pouco danificado, mas pude ler muitas partes importantes e encontrar exatamente o que buscava. Logo nas páginas iniciais se informava que o habilitando Luiz era “[…] neto por parte paterna de […] Machado e Grácia Barcelos da Ilha Terceira”, mas em anotação lateral lê-se claramente que “declara o habilitando que sua avó paterna é Isabel de Souza, mulher solteira, natural desta cidade.” Disso se deduz que havia alguma dúvida quando à identidade dos avós paternos de Luiz, ou seja, dos pais de Roque de Barcelos, que o processo também atesta ser natural da cidade do Rio de Janeiro. Várias testemunhas foram convocadas para depor sobre as boas origens familiares do habilitando Luiz e todas atestaram seu “bom sangue” cristão-velho e seus bons costumes, mas algumas também divergiram quanto à sua ascendência paterna.
Uma das primeiras testemunhas declarou que Luiz era “neto pela parte paterna de […] Machado e de uma mulher do gentio da terra […]”, que era a forma como se identificavam as pessoas ameríndias. Outra, que era “neto pela parte paterna de [André] Machado e de uma mulher solteira por nome Catarina, do gentio da terra […]”. Aqui temos alguma convergência quanto à avó paterna de Luiz ser uma mulher indígena e solteira, mas divergência quanto a sua identidade, pois a testemunha a identificou como Catarina, mas o próprio interessado a teria identificado como Isabel de Souza. No processo informa-se que Luiz depois apresentou petição para provar que era neto paterno de “André Machado, solteiro, e de Isabel de Souza, mulher solteira, natural desta mesma cidade”, porém sem informar da origem nativa de sua avó paterna.
Duas outras testemunhas parecem ter sido mais precisas. A primeira delas, o padre Francisco da Costa, confirmou que Luiz era “neto pela parte paterna de André Machado, solteiro, e de uma mameluca também solteira […]”, talvez informando que ela era uma mulher mestiça, embora não tenha identificado a mulher. Mas ele disse mais: que “conhecera a seus primos legítimos Bartolomeu Machado, Antônio Machado e Grácia de Barcelos, mãe do dito e bisavó do dito habilitando […]”. Esse Bartolomeu Machado já havia sido identificado por Rheingantz como filho de Grácia de Barcelos e Diogo Domingues Machado, como vemos abaixo.

Pelo testemunho do padre estaria provada a filiação de Roque em André e a deste em Grácia de Barcelos, que era mãe de Bartolomeu Machado e Antônio Machado (de Barcelos), este meu antepassado direto, casado com Bárbara Nunes. A mesma informação foi reiterada pela testemunha Leonor Coelho, natural da Capitania do Espírito Santo, que declarou que o habilitando era “neto pela parte paterna de André Machado e de uma moça do gentio da terra, aos quais não se lembra se os conheceu, porém que conheceu Grácia de Barcelos, mãe do dito André Machado, e a seu irmão do dito André Machado […]”.
Diogo Domingues Machado e Grácia de Barcelos casaram-se nos primeiros dias de dezembro de 1597 na igreja de Nossa Senhora da Conceição, na cidade de Angra do Heroísmo da Ilha Terceira, no arquipélago dos Açores. A imagem de seu assento matrimonial é exibida abaixo, seguida de sua respectiva transcrição.

Em os [4] de dezembro de 97, recebi em face de igreja [na] forma do Sagrado [Concílio Tridentino] a Diogo Domingues, filho de Bartolomeu Gonçalves Machado e de sua mulher [Bernarda] Álvares, fregueses de Santo Antônio do Porto Judeu, com Grácia de Barcelos, filha de Manoel [Afonso], já defunto, e de sua mulher [Bárbara] de Barcelos, fregueses desta freguesia. [O] que fiz por mandado do vigário geral por lhe não serem corridos os banhos, nem receberam as bênçãos. Os admoestei que não coabitassem por assim o mandar. Foram testemunhas Baltazar Fernandes Gato […] Manoel Machado, seu irmão. […]
Com isso, penso que posso colaborar para atualizar o tronco na obra do mestre Rheingantz da seguinte forma:
DIOGO DOMINGUES MACHADO n. poss. na Ilha Terceira dos Açores por volta de 1577, filho de Bartolomeu Gonçalves Machado e [Bernarda] Álvares e fal., casado em dezembro de 1597 em Nossa Senhora da Conceição, Angra do Heroísmo, Ilha Terceira, com Grácia de Barcelos, n. poss. na Ilha Terceira, filha de Manoel [Afonso] e [Bárbara] de Barcelos, e fal. Pais de:
I. Bartolomeu Machado […]
II. Antônio Machado n. por volta de 1600 e fal., casado por volta de 1640 com Bárbara Nunes e fal. Pais de:
II.1 Maria Machado n. por volta de 1642 e fal. em 8 de julho de 1705 (Irajá, Rio de Janeiro), casada por volta de 1654 com Fernando Muniz Barreto, bat. em 14 de agosto de 1622 (Sé, Rio de Janeiro) e fal. […]
II.2 Diogo Domingues bat. em 2 de novembro de 1644 (Candelária, Rio de Janeiro) e fal., casado em 2 de julho de 1682 (Candelária, Rio de Janeiro) com Susana de Lima n. por volta de 1668 e fal., filha de Pedro Gonçalves e Juliana das Neves […]
III. André Machado de Barcelos n. por volta de 1619 e fal. Pai, com “a mameluca” Isabel de Souza, de:
III.1 Roque de Barcelos n. no Rio de Janeiro por volta de 1629 e fal., casado por volta de 1663 com Ana Correia, bat. em 8 de novembro de 1637 (Sé, Rio de Janeiro) e fal., filha de Salvador Lopes e Maria Correia […]
O sobrenome Barcelos, que comprovei haver se originado em minha ascendência com Bárbara de Barcelos, mãe de Grácia, ressurgiu em Inês Muniz Veloso de Barcelos (1716-1777), tetraneta da última, e depois apenas mais uma vez em minha pentavó Preciosa Maria de Barcelos (1798-?), bisneta de Inês. E para finalizar posso atestar que o habilitando Luiz de Barcelos Machado foi considerado limpo de sangue e sem nada que o desabonasse em seus costumes.
Este texto se enquadra dentro do conceito de genealogizar que apresentei anteriormente. Aproveito para registrar meu agradecimento à equipe do Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro.
José Araújo é genealogista.