… mas antigamente as pessoas viviam menos, morriam cedo.
Quando ouvi essa afirmativa de uma amiga psicóloga, imediatamente varri a memória sobre os já então incontáveis antepassados que havia conseguido incorporar à minha árvore familiar e dei uma resposta igualmente afirmativa: “Isso não é verdade e posso comprovar com dados de minha pesquisa”. De fato, já entre meus tios maternos e paternos, nascidos nas primeiras décadas do século XX, encontrei poucos que tiveram vida curta. Minhas tias maternas viveram bem mais que seus irmãos e maridos e faleceram na casa dos oitenta.
O pensamento de minha amiga não é de todo infundado, pois nossa tendência é de creditar a longevidade contemporânea à qualidade de alimentação e à disponibilidade de tratamentos de saúde, vacinação, medicamentos etc. E sem dúvida que temos à nossa disposição recursos médicos bem mais avançados e eficazes do que tinham nossos antepassados em seus tempos de vida. Sem mencionar que hoje é muito mais provável que uma nova doença seja em pouco tempo combatida com uma vacina ou medicamento desenvolvido graças aos avanços da Genética. A Ciência, enfim, costuma ser o fundamento em que nos baseamos para supor que hoje se viva mais e melhor do que nos séculos passados.
Mas isso não invalida a percepção que tenho a partir da pesquisa que faço em documentos dos séculos XVI ao XIX e que verbalizei imediatamente em resposta a minha amiga. O caso mais emblemático é o de meu antepassado português João Ramalho, para o qual não há muitas fontes primárias disponíveis, embora existam testemunhos de contemporâneos. Graças a esses testemunhos sabemos que João já andava pelo litoral e pelo planalto paulistas quando Martim Afonso de Souza (1500-1564) fundou a vila de São Vicente em 1534. Ignoramos se era degredado, náufrago ou fugitivo, mas se sabe que deixara mulher em Portugal. Nas terras brasileiras, viveu muitos anos em concubinato e teve nove filhos com M’bicy ou Bartira (flor, na língua nativa), filha do cacique Tibiriçá, mas conta-se que teve mais filhos com outras mulheres nativas.
Os relatos dão conta de que João Ramalho sempre teve grande vigor físico, o que é admirável para um homem que viveu em terras onde não havia médicos e onde os perigos de ataques por animais selvagens e peçonhentos ou por grupos indígenas inimigos eram rotineiros, para não falar das doenças endêmicas para as quais apenas os indígenas teriam desenvolvido resistência imunológica após milênios de exposição. Em 1564, quando era já homem maduro e com vários filhos criados, João teria sido procurado por uma comitiva de paulistas que haviam ido lhe comunicar que ele havia sido eleito vereador da vila de São Paulo de Piratininga, cargo que ele recusou, como se lê na ata vista abaixo e transcrita a seguir.
E depois disso, aos 15 dias do mês de fevereiro da era de 1564 anos, nesta vila de São Paulo, eu, João Fernandes, escrivão da Câmara da dita vila, com Baltazar Rodrigues, procurador do Conselho da dita vila, fomos às casas de Luiz Martins, que são na dita vila, onde aí estava João Ramalho pousado. Nós lhe requeremos que aceitasse o cargo de vereador desta vila porquanto saíra na eleição e pautou que nesta dita vila se fez por vereador. E pelo dito João Ramalho nos foi dito que ele era um homem velho, que passava dos 70 anos e que estava tão bem em um lugar, em terra dos contrários desta vila, digo, dos contrários da Paraíba, e que estava tão bem como degredado no dito lugar e que pelas tais razões não podia servir o dito cargo e que suas mercês chamassem outro. O que assinou aqui, eu, João Fernandes, escrevi. _ João Ramalho Baltazar Rodrigues
Por esse evento deduzimos que João Ramalho tenha nascido antes de 1494. Sabendo que seu óbito ocorreu em 1580, ele teria já bem mais de 80 anos ao falecer. A partir de extratos das cartas dos primeiros jesuítas no Brasil, podemos montar a seguinte cronologia de eventos na vida de João, cuja longevidade parece bem atestada:
- c. 1493 — nascimento em Viseu
- c. 1510–1530 — chegada ao litoral brasileiro por estimativa de relato jesuítico em 1550 de que estava “há 40/50 anos na terra”
- décadas de 1530–1540 — assentamento junto a aldeias em torno de São Vicente / Piratininga; relação duradoura com M’bicy; nascimento de filhos e formação de uma grande família mestiça
- 1551 — incidente em que é descrito como um homem que está “há 40 anos nesta terra” e faz ameaça a um padre
- c. 1559–1560 — falecimento da mulher M’bicy segundo relato de Anchieta de que “há pouco” faleceu uma velha que fora manceba de um português por quase 40 anos
- 1564 — recusa do cargo eletivo em São Paulo
- 1580 — morte no Brasil, provavelmente onde vivia no vale do Paraíba
José Araújo é genealogista.
1 comentário
Tibiriçá – Genealogia Prática · 29 de setembro de 2025 às 09:04
[…] origem à vila de São Paulo […].” Além de aliado dos colonizadores, Tibiriçá foi sogro do enigmático e longevo português João Ramalho, que já vivia nas terras paulistas antes de 1534, em união com Bartira, filha do cacique. Por seu […]
Os comentários estão fechados.