As obras de grandes genealogistas do passado como a de Frei Jaboatão, a de Pedro Taques, a de Rheingantz e a de Silva Leme são fundamentais para a construção das árvores genealógicas de boa parte dos brasileiros contemporâneos, mesmo para aqueles que se propõem a criá-las no FamilySearch, plataforma colaborativa onde um ramo criado pode se unir a outros já disponíveis e criados por terceiros a partir de referências obtidas nas tais obras. Para o bem da precisão, é preciso reconhecer que as grandes obras genealógicas não estão absolutamente corretas e podem conter erros de interpretação dos documentos originais. Outro aspecto que merece atenção é o fato de que elas nem sempre informam as datas e locais de nascimento, casamento e óbito dos membros das famílias nelas contidas. Este último é um aspecto que desperta meu interesse, pois dispor dessas informações é essencial para a construção de um relato histórico e familiar fidedigno. Um caso a que há algum tempo tenho me dedicado é o do cristão-novo Afonso Mendes, cirurgião-mor da corte portuguesa que veio para Salvador em 1557 na frota que trouxe Mem de Sá, o terceiro governador-geral do Brasil. Pouco se sabe sobre a vida dele antes da vinda para o Brasil e sobre a de seus familiares em Portugal e no Brasil, pois nenhuma obra genealógica do passado se dedicou inteiramente a eles. Por essas razões eu me predispus a reunir as pistas esparsas disponíveis para tentar construir um relato coerente.

Com Afonso Mendes, vieram, provavelmente também em 1557, sua mulher Maria Lopes e alguns dos cinco filhos que eles já teriam, a saber:  Álvaro Pacheco, Ana de Oliveira, Branca de Leão, Manoel Afonso e Violante Pacheco. Pelo documento no qual o rei de Portugal autorizou seu cirurgião-mor a emigrar para a capital da colônia, sabe-se que Mestre Afonso, como era mais conhecido, era filho de Álvaro Mendes, natural de Portel, vila no distrito de Évora, no Alentejo Central. O mestre cirurgião faleceu no Brasil após 14 anos de serviços prestados a Mem de Sá, de quem foi médico pessoal. Entre as pistas esparsas sobre sua vida e as de seus familiares, existem um breve trecho na obra de Frei Jaboatão, os depoimentos prestados ao visitador do Santo Ofício da Inquisição que esteve em Salvador em 1591 e em Pernambuco em 1593 e ainda algumas licenças que certo mestre Afonso recebera do rei português antes de 1557. Em todos esses casos, há evidências esparsas sobre datas e locais que reúno aqui para tentar construir um relato coerente da vida desses meus antepassados que foram várias vezes denunciados por supostamente manter os costumes de seus antepassados.

Bilhete assinado por Mestre Afonso (me aº) em 5/02/1513 ordenando pagamento a me Fernando por material (alvaiade) comprado para a botica real

Não se sabe quando Afonso Mendes nasceu, mas podemos imaginar que ele fosse natural de Portel, terra natal de seu pai Álvaro. Sabemos que ele já era cirurgião-mor em 1557 quando obteve autorização real para emigrar, portanto teria já mais de 20 anos de idade. Em buscas na plataforma Digitarq, encontrei vários documentos sobre um mestre Afonso, dos quais os que parecem ter mais aderência ao caso foram uma licença passada em maio de 1511 a um mestre Afonso, natural de Évora e morador em Lisboa, para “curar de boubas e das suas chagas por todo o reino”, depois de ter sido examinado por mestre Gil, físico e cirurgião-mor; e outra passada em fevereiro de 1521 a um mestre Afonso, cirurgião-mor em Lisboa, “para andar de mula”. Se ambos esses registros realmente se referirem a Mestre Afonso Mendes, ele deveria ter ao menos 20 anos de idade em 1511 quando foi examinado e ao menos 30 anos quando parece ter substituído seu avaliador Mestre Gil no cargo de cirurgião-mor. Isso lhe daria um nascimento em 1490, o que significa que ele nascera judeu e fora convertido no ato de 1497, quando D. Manuel I obrigou os judeus a escolher entre a conversão forçada ou a expulsão do reino. Afonso Mendes faleceu no Brasil antes da chegada do visitador da Inquisição em 1591 e depois de servir por 14 anos como médico pessoal de Mem de Sá, que também lhe concedeu remuneração para administrar a botica local. Com mais essa evidência, e sendo as anteriores corretas, ele deve ter falecido por volta de 1570 na idade avançada de 80 anos.

Maria Lopes era já viúva de Mestre Afonso quando apareceu diante do visitador do Santo Ofício, em 3 de agosto de 1591, para prestar depoimento. No ato ela declarou ser cristã-nova natural de Monsaraz, termo de Évora, e ter 65 ou 66 anos de idade, o que lhe daria um nascimento entre 1525 e 1526. Como na época as mulheres poderiam se casar a partir dos 14 anos, ela deve ter contraído matrimônio com Afonso Mendes por volta de 1540, tendo ele já 50 anos de idade – não descarto a possibilidade de ele ser viúvo ao se casar com ela. A diferença de idade pode parecer grande, mas meu avô paterno Antônio, também português, contraiu segundas núpcias com essa idade em 1918 e teve seis filhos com minha avó Josefa, que tinha 18 anos, sendo que ele já tivera outros treze da primeira esposa. Voltando a Maria e Afonso, eles devem ter tido seu primeiro filho em 1540 ou no ano seguinte. Depois de enviuvar no Brasil, Maria teve um relacionamento com Henrique Rodrigues de Barcelos, tio do cristão-novo e mestre de gramática Bento Teixeira, denunciado e condenado pelo Santo Ofício. Em seu depoimento, Bento declarou que Maria vivia amancebada publicamente com seu tio e que este era por ela manipulado, o que nos permite imaginar que mesmo na idade madura ela fosse uma mulher atraente e sedutora. Maria faleceu na Bahia depois de 1594, conforme se lê no depoimento de sua filha Violante mais à frente.

Processo de Mestre Bento Teixeira (ANTT, 1595)

5º. E como é verdade, como antes de se ir, teve palavras com João Vaz Serrão e sua mulher Leonor da Rosa pelos respeitos que tudo tem na Mesa do Santo Ofício no mês da graça e também sua irmã Maria Lopes, mulher que foi de Mestre Afonso, por ele dito Bento Teixeira não querer levar algumas vezes os presentes que lhe mandava seu tio Henrique Rodrigues Barcelos que estava amancebado com ela publicamente e também por ele dito Bento Teixeira chamar publicamente Maria [de] subtil , pelas manhas e ardis que usava com o dito seu tio, pelos quais respeitos assim a dita Maria Lopes, João Vaz e Leonor da Rosa, irmã da dita Maria Lopes, lhe tinham capital ódio, dizendo que eles o [teriam] em tal estreiteza que só Deus lhe seria bom.

Dos cinco filhos de Afonso e Maria, Violante Pacheco é a única de quem há uma origem objetivamente conhecida, pois ela prestou depoimento ao visitador do Santo Ofício em dezembro de 1594 em Pernambuco, onde morava, quando declarou ser cristã-nova natural de Portel e ter 44 anos de idade, o que lhe daria um nascimento exatamente em 1550. De seu casamento com o cristão-velho Gaspar de Almeida, Violante teve uma filha que faleceu na Bahia com oito anos de idade 13 ou 14 anos antes da data do depoimento, o que nos permite supor que seu casamento tenha ocorrido por volta de 1570, quando ela teria já 20 anos de idade. Ela perderia ainda mais dois filhos quando já morava na Paraíba. Violante ainda estava viva em 1614 ou 1615, pois, em 23 de setembro de 1618, durante a segunda visitação do Santo Ofício à Bahia (1618-1620), foi denunciada por Justina de Almeida, sobrinha de seu marido, que observou comportamentos suspeitos dela quando se hospedara na casa do tio em São Sebastião do Passé, no Recôncavo, “três ou quatro anos” antes.

CONFISSÃO DE VIOLANTE PACHECA, CRISTÃ-NOVA NA GRAÇA – 17 de dezembro de 1594. Disse ser cristã-nova, natural de Portel em Alentejo, filha de mestre Afonso, cirurgião, defunto, e de sua mulher Maria Lopes, que está na Bahia, de idade de quarenta e quatro anos, casada com Gaspar de Almeida, cristão-velho, morador no forte de Guaiana desta capitania [de Pernambuco]. […] Confessou mais que haverá 3 ou 4 anos que, morando na Paraíba, lhe morreram dois filhos: Antônio de nove anos, de comer terra, saindo-lhe umas empolas que presumiam ser boubas; e Fernando, menino de seis anos, de boubas […] E que outrossim, haverá 13 ou 14 anos, morando na Bahia de Todos os Santos, lhe morreu uma filha sua moça de 8 anos […] _ Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil – Denunciações e Confissões de Pernambuco 1593-1595

Na improbabilidade de Afonso e Maria não terem tido um filho ou filha logo depois de seu casamento em 1540, passei a considerar Manoel Afonso, pois, além de ele ter recebido ou escolhido o nome de seu pai como segundo nome, sabemos que seu pai usou de influência com o governador-geral no Brasil para obter indicação dele a capelão da Sé de Salvador em outubro de 1560, o que sugere que o rapaz já tivesse alguma ligação com a vida religiosa desde Portugal, onde teria nascido perto de – na verdade depois de – 1540. Em seu depoimento, Maria Lopes menciona fatos ocorridos após o falecimento de Manoel Afonso, pelo que sabemos que ele faleceu no Brasil antes de 1591. Neste contexto, Manoel Afonso parece ter sido o primogênito de Afonso Mendes e Maria Lopes.

Álvaro Pacheco havia sido meu primeiro candidato a primogênito, pois ele tinha o mesmo prenome do pai de Mestre Afonso e havia um costume de dar ao primogênito o nome de seu avô paterno. No entanto, em depoimento ao visitador do Santo Ofício, em julho de 1591, disseram que Álvaro parecia ter 35 anos de idade. Como a declaração foi de terceiro e relativa apenas à aparência, ele poderia ter já uns 40 anos de idade, o que lhe daria um nascimento após 1550. Álvaro casou-se com uma prima materna no ritual judaico, como denunciaram ao Santo Ofício, e esse casamento pode ter ocorrido em 1586, quando ele tinha 35 ou 36 anos, pois sua mãe declarou em depoimento, em 1591, que “[…] haverá cinco anos em dia das cadeias de São Pedro, no qual dia se costuma guardar nessa cidade, por estar esperando um seu filho casado de pouco que vinha com sua mulher […]”.

Considerando o intervalo de quase dez anos entre os nascimentos de Manoel Afonso e de Violante, suspeitei que ou Ana ou Branca teria sucedido ao primogênito. Ana teve dois matrimônios e era viúva em 1591. De seu marido Gaspar de Vila Corte de Peralta, ela teve Branca, Isabel, Maria e Sebastião. Branca casou-se com o viúvo português Antão, que estimo ter falecido por volta de 1618, tendo sua filha mais velha 28 anos de idade, o que lhe daria um nascimento por volta de 1576. Isabel casou-se com o mercador belga Gaspar de Mere após 1615. Como sua mãe era viúva em 1591, ela poderia ter nascido perto de 1580. Maria casou-se com o comerciante inglês Tomas Babintão e foi condenada por sacrilégio e judaísmo depois de depor em Pernambuco em outubro de 1593, quando declarou ter “vinte e seis anos, pouco mais ou menos”, o que daria um nascimento em 1567. Sebastião foi citado em depoimento de Bento Teixeira em dezembro de 1597 como um rapaz “[…] de idade de vinte e quatro anos, pouco mais ou menos […]”, o que daria um nascimento antes de 1573. Pelas estimativas dos nascimentos dos filhos, Ana de Oliveira teria nascido em 1553 ou pouco antes, portanto ainda em Portugal.

Branca de Leão constitui o caso menos documentado. Sabemos que ela foi casada com o cristão-novo Antônio Lopes Ulhôa e não consta que tenham tido filhos. O que se sabe dela consta em depoimentos prestados em julho de 1591, quando era já falecida, e sobre fatos que haviam ocorrido há pouco mais de 18 anos, ou seja, por volta de 1573. Em um desses depoimentos, a declarante relata que Branca era “filha donzela de Mestre Afonso e Maria Lopes”, ou seja, era ainda solteira e poderia ainda não ter idade para se casar. Por isso estimo que ela possa ter nascido em Portugal antes de 1557 ou já no Brasil depois da chegada de seus pais. As informações disponíveis sobre ela não permitem esclarecer os eventos.

A partir da análise apresentada, surge o seguinte quadro genealógico da ascendência e descendência de Mestre Afonso Mendes.

Quadro Genealógico

José Araújo é genealogista.


José Araújo

Genealogista

1 comentário

Insuspeito – Genealogia Prática · 15 de novembro de 2025 às 07:07

[…] 14 anos de serviços prestados à autoridade máxima da colônia e deixou a viúva Maria Lopes, falecida após 1594. Além de Ana de Oliveira, Afonso e Maria tiveram Álvaro Pacheco, Branca de Leão, Manoel Afonso e […]

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