Os processos de Leitura de Bacharéis a cargos de magistratura são documentos valiosíssimos para a Genealogia de famílias com ascendência portuguesa. Nessas fontes encontramos informações coletadas pelo Desembargo do Paço durante as inquirições sigilosas feitas com intuito de conhecer as origens familiares dos candidatos e de atestar seus bons costumes e comportamento. Consoante os regimentos da época, buscavam-se testemunhas capazes de assegurar que o candidato não era descendente de cristão-novo, mouro ou africano; não tinha histórico de vida desabonador; e não exercera algum ofício mecânico ou manual. Receber testemunho de algum desses elementos deveria eliminar o candidato antes que pudesse prestar as provas exigidas para o cargo desejado. Assim deveria ser, mas nem sempre foi.

O caso que quero apresentar é o do bacharel Gaspar de Mere de Sousa, natural de Lisboa e lente de matemática da Universidade de Coimbra. A apresentação de seu processo em julho de 1662 informava que ele era “filho de Gaspar de Mere e de Dona Serafina de Sousa, “[…] neto por parte de seu pai de Gaspar de Mere e de Isabel de Peralte […]”. Interrompo a descrição da ascendência pelo ramo paterno, pois é nele que se encontram os elementos mais interessantes para o que desejo demonstrar. Por esse mesmo ramo, Gaspar declarou que descendia de Gaspar de Mere, cidadão Belga natural de Anvers, “filho de Lucas de Mere e de Dona Anna Vander”, que me soa como Anna Van Der …, ou seja, falta o sobrenome familiar da avó paterna, o qual ele poderia desconhecer. Sobre sua avó Isabel, no entanto, Gaspar nada informou.

Assinatura de Gaspar de Mere de Sousa

As testemunhas do processo foram, em ordem de depoimento, Amaro da Costa, Gonçalo Pinto Soares, Diogo Mendes de Leão, um Domingos cujo sobrenome não consegui interpretar, Gaspar de Lemos de Faria, Antônio Soares Pantoja, Marcos Teixeira de Abreu e Felipe de Sá Soares, todos homens maiores de 40 anos, um deles cavaleiro fidalgo e outro cavaleiro da Ordem de Cristo. Praticamente todos atestaram reconhecer a identidade dos pais e/ou dos avós do candidato Gaspar, mas alguns declararam não ter conhecido seus avós. Todos atestaram que Gaspar era solteiro, tinha excelente comportamento e não tinha ascendência judaica, moura, cristã-nova nem em pessoas que tivessem exercido atividade mecânica. Das oito testemunhas, apenas uma acertou o sobrenome da avó paterna de Gaspar – era Peralta e não Peralti – , o que tem importância para este relato.

Gaspar de Mere, mercador e avô paterno do candidato, era mesmo um estrangeiro em terras brasileiras, para onde emigrou depois de uma estadia em Lisboa, onde já estaria em 1587. Em 1597, comerciava em Olinda quando deve ter-se casado com Isabel de Peralta. Gaspar foi acusado de fraudar o fisco, foi preso em 1606 e levado a Lisboa, onde residiu novamente de 1611 a 1615. Voltando a Pernambuco, adquiriu o engenho de Marapatigipe, do qual fugiu antes que os holandeses ocupassem a capitania. Sabemos que o mercador Gaspar teve por cunhado um inglês de nome Tomás Babintão, casado com Maria de Peralta, irmã de sua mulher. É aqui que o caso se torna interessante.

Isabel e Maria de Peralta eram filhas de Gaspar de Vila Corte de Peralta, espanhol do País Basco que Bento Teixeira (1561-1618), mestre de gramática cristão-novo processado e condenado pela Inquisição, identificou como “médico e cirurgião”. Se já não bastassem tantos homens batizados como Gaspar, vamos encontrar outro cirurgião nessa história de família, pois o biscainho Peralta se casou no Brasil com Ana de Oliveira, filha do cirurgião Afonso Mendes, mais conhecido como Mestre Afonso. Este, por sua vez, era cirurgião-mor em Lisboa quando pediu ao rei que lhe concedesse a graça de vir para Salvador da Bahia com Mem de Sá, o terceiro governador-geral do Brasil. Pediu e foi atendido, pelo que partiu de Lisboa em 1557.

Mestre Afonso faleceu no Brasil após 14 anos de serviços prestados à autoridade máxima da colônia e deixou a viúva Maria Lopes, falecida após 1594. Além de Ana de Oliveira, Afonso e Maria tiveram Álvaro Pacheco, Branca de Leão, Manoel Afonso e Violante Pacheco. Toda a família era conhecida por sua origem cristã-nova, a qual foi plenamente reconhecida por alguns deles em depoimentos na primeira visitação do Santo Ofício à Bahia em 1591, depois de terem sido denunciados por manter práticas judaizantes. Disso se conclui que Gaspar de Mere de Sousa era neto, bisneto e trineto de cristãos-novos, pois sua avó Isabel de Peralta, sua bisavó Ana de Oliveira e sua trisavó Maria Lopes tinham ascendência judaica.

Diante desse cenário, Gaspar de Mere de Sousa não poderia ter seguido adiante em seu processo pelo impedimento de sangue, mas ele teve sucesso na empreitada, pois em 7 de setembro de 1663 foi nomeado Juiz de Fora de Santarém, depois Provedor de Portalegre e em seguida de Lamego. Em 10 de junho de 1681, foi nomeado Corregedor do Cível de Lisboa. Nada mal para quem seria vetado se os regimentos fossem observados à risca. A simples leitura do processo sem uma pesquisa adicional, embora fornecesse os nomes corretos dos ascendentes para fins genealógicos, deixaria de fora todo um enredo importante para a história familiar desse personagem.

Trecho do processo nomeando o escrivão Diogo Mendes de Leão

Restaria saber como Gaspar se livrou de ser barrado ao cargo por sua origem cristã-nova. Suspeito de que possa haver mais de uma explicação e talvez uma delas tenha relação com a testemunha Diogo Mendes de Leão, cujos sobrenomes são encontrados também na família de Gaspar, que era trineto de Afonso Mendes e Maria Lopes, esta sobrinha de um médico chamado Duarte de Leão e mãe de uma jovem chamada Branca de Leão. Pretendo investigar essa possibilidade.


José Araújo é genealogista.


José Araújo

Genealogista