Quando a árvore genealógica alcança gerações muito remotas, além dos decavôs, por exemplo, é possível que não se encontrem mais livros com registros de eventos vitais como batismos, casamentos e óbitos. Esses livros podem ter sido destruídos por incêndios ou inundações, pela ação de insetos ou pela corrosão provocada pela tinta com que se escreviam os registros. Com sorte, talvez se consigam informações em fontes secundárias como obras de pesquisadores do passado, mas talvez essas obras deixem de mencionar elementos importantes como as datas em que as pessoas nasceram, se casaram ou morreram, pelo que pode ser necessário fazer estimativas a partir de pontos de referência disponíveis. O que apresento abaixo é um exemplo de como tento elaborar essas estimativas.

Após derrubar um muro de tijolos genealógico que impedia o crescimento de um ramo materno de minha árvore familar, descobri a identidade de meus tridecavôs maternos Antão Delgado Aires e Branca de Peralta, esta neta de Mestre Afonso Mendes, cirurgião-mor em Lisboa que chegou ao Brasil na esquadra do governador-geral Mem de Sá. Antão e Branca fazem parte de um título da genealogia baiana publicado no Catálogo Genealógico das Principais Famílias de Frei Antônio de Santa Maria Jabotão. Nesse título (pp. 364-365) lemos o trecho inicial transcrito a seguir.

AIRES, CORDEIROS, DELGADOS

Antão Delgado Aires, natural do reino, casado no Porto com F. de Cárdiga, da qual tinha filhos e veio para a Bahia com alguns da dita mulher. E não se acha ao certo se já era viúvo. E só que na Bahia casou segunda vez com Branca de Peralta, da qual teve também vários filhos, como consta do inventário, que por sua morte fez a dita sua segunda mulher Branca de Peralta, no qual inventário se nomeiam onze, que são os seguintes:

Da primeira mulher foram:

  1. Antônio Cordeiro Aires, que se segue;
  2. Felipa de Cárdiga, que casou e faleceu ainda em vida de seu pai e deixou filhos;
  3. Jerônimo de Cárdiga;
  4. Manoel Delgado.

Da segunda mulher foram:

  1. Jerônimo Aires;
  2. D. Ana, casada com Simão Barbosa;
  3. D. Maria Cordeiro, de idade de 28 anos;
  4. Gaspar Cordeiro, de idade de 24 anos;
  5. Francisco Cordeiro, de idade de 22 anos;
  6. Antão Delgado, de idade de 17 anos;
  7. Isabel, de idade de 5 anos.

Como estimar os marcos temporais – nascimento, casamento, óbito – relacionados à vida de Antão Delgado Aires a partir das informações disponíveis sobre ele e seus descendentes?

Sabemos que Antão foi casado duas vezes e temos conhecimento da idade de alguns de seus filhos com Branca de Peralta, sua segunda mulher, que declarou essas idades no inventário que ela fez dos bens do marido. Sabemos que alguns filhos eram casados e que uma filha – da primeira mulher – faleceu já casada e deixando filhos quando Antão ainda era vivo. Disso deduzimos que ele se casou com Branca quando talvez já fosse um homem um pouco mais maduro, certamente mais velho do que ela. Para podermos estimar as datas desejadas, precisaríamos contar com ao menos uma informação que estivesse ancorada em dados conhecidos. Para minha sorte, há conhecimento de ao menos uma data específica relacionada a um neto de Antão e Branca pelo filho Gaspar, o que teria 24 anos no inventário de seu pai.

Esse neto se chamava Tomás Cordeiro de Peralta. Ele foi vereador na cidade do Rio de Janeiro e testamenteiro de seu pai Gaspar Cordeiro, falecido na mesma cidade em março de 1673. Tomás foi também testemunha, em 1690, de dois processos matrimoniais – de Agostinho de Miranda e Maria de Medeiros e de Antônio Ribeiro e Lourença de Brito – em que declarou ter 65 anos, pelo que estimamos que tenha nascido em 1625. Visto que ele foi descrito em ambos os processos apenas como “morador no Rio de Janeiro” e não natural dessa província, supomos que ele tenha nascido na Bahia, terra natal de seu pai. Essa possibilidade pode ser corroborada por uma informação que consta no registro do óbito de Gaspar, parcialmente exibido e totalmente transcrito abaixo, onde este declara que levou da Bahia para o Rio de Janeiro uma mulher afrodescendente e liberta com quem teve uma filha.

Aos trinta e um de março de mil seiscentos e setenta e três faleceu Gaspar Cordeiro. Recebeu os sacramentos [e] fez seu testamento e nele pedia à santa Irmandade da Misericórdia, [de] que fora muitos anos irmão, que o enterrassem pelo amor de Deus […] a venerável Ordem Terceira do Carmo da qual era terceiro e assim foi sepultado na dita Igreja do Carmo, amortalhado no mesmo hábito. Acompanharam seu corpo o seu pároco com seus clérigos e os religiosos do Carmo. Nomeou por seus testamenteiros a seu filho Tomás Cordeiro e Antão Cosme, aos quais pediam fizessem bem por sua alma. // Declarou que tinha em sua casa uma negra por nome Mariana a qual era forra e por tal a trouxera da Bahia, da qual [tivera] uma filha à qual deixava por esmola o enxoval de [Crisma?] e roupa e tudo mais que se achar. // Declarou mais que tinha outra filha mulata por nome Marcelina, a qual é livre e forra por carta que lhe dera. // Declarou que dois mulatos que ficaram forros um forrara por ser seu neto e outro que o forrou […] de serviços que a seu pai […] e não continha mais quanto ao pio. De que fiz este assento.

Sabemos que além de Marcelina, de Tomás e da filha que teve com a liberta Mariana, Gaspar Cordeiro foi ainda pai de Antônio de Peralta, igualmente natural da Bahia e falecido no Rio de Janeiro. Diante da impossibilidade de estimar qual dos filhos seria o mais velho e ao mesmo tempo considerando que temos uma data provável de nascimento para Tomás – 1625 – , seguiremos a estratégia geral de considerar o nascimento de um homem em pelo menos 20 anos antes do nascimento de seu primeiro filho e Tomás será considerado esse primogênito. Assim, supomos que Gaspar Cordeiro tenha nascido em Salvador em 1605, mas é provável que tenha nascido antes. Por segurança, podemos trabalhar com o ano de 1590. Se ele tinha 24 anos na época do inventário de seu pai Antão, este último deve ter falecido em 1614 – talvez pouco antes.

Com essa referência, podemos estimar as datas de nascimento dos filhos de Antão e Branca com as informações dadas por ela no inventário: Isabel (1609, por ter cinco anos quando seu pai faleceu em 1614), Antão Delgado (1597), Francisco Cordeiro (1592), Gaspar (1590), Maria Cordeiro (1586). Os dois filhos seguintes não têm idade declarada pela mãe, mas sabemos que D. Ana era já casada com Simão Barbosa, pelo deveria ter ao menos 14 anos no casamento – sendo também mais velha que sua irmã Maria – , portanto deve ter nascido antes de 1586. Pode ter havido um intervalo de dois a quatro anos entre os nascimentos delas, portanto supomos que Ana tenha nascido entre 1582 e 1584. Por fim, temos Jerônimo Aires, filho primogênito de Branca de Peralta. Na falta de mais informações, supomos que tenha nascido entre 1580 e 1583.

Antão, portanto, pode ter se casado com Branca de Peralta perto de 1580. Do primeiro casamento ele tivera quatro filhos, dos quais Felipa era já falecida, tendo deixado filhos órfãos, pelo que estimamos ela tivesse mais de 20 anos ao falecer. Como Branca declara que sua enteada faleceu quando Antão estava vivo, o óbito ocorreu antes de 1614, mas pode ter ocorrido perto do segundo casamento dele, ou seja, na década de 1580 ou antes. Se estimarmos o nascimento de um filho a cada dois anos, podemos chegar a esta estimativa para o nascimento dos filhos de Antão com sua primeira mulher: Manoel Delgado (1573), Jerônimo de Cárdiga (1575), Felipa de Cárdiga (1577) e Antônio Cordeiro Aires (1579).

Ajustando, enfim, os nascimentos dos filhos de Branca para os quais não havia idade no inventário, teríamos o seguinte: Jerônimo Aires (1580), D. Ana (1584), Maria Cordeiro (1586), Gaspar (1590), Francisco Cordeiro (1592), Antão Delgado (1597) e Isabel (1609). E assim retrocedemos a data suposta do segundo casamento de Antão para 1579 e por fim seu nascimento para 20 anos antes do nascimento de seu primogênito com a primeira mulher, ou seja, 1555. Como essas datas são todas estimadas, é provável que os fatos tenham ocorrido pouco antes do que apresento aqui, mas elas servem como balizadores até que surjam novas evidências documentais e mesmo no auxílio à busca documental.


José Araújo é genealogista.


José Araújo

Genealogista