Na vigência do regime escravocrata, antes das Leis do Ventre Livre e dos Sexagenários, receber ou conquistar a liberdade era algo que poderia depender de onde viviam os escravizados. Aqueles que viviam em regiões agrícolas normalmente obtinham a liberdade pela decisão de seus proprietários – que costumavam deixavam sua vontade expressa em testamento – ou pela simples fuga do cativeiro. Já os escravizados urbanos, especialmente as mulheres que trabalhavam no comércio, tinham mais oportunidades. Mediante acúmulo de parte dos resultados de suas vendas, elas poderiam reunir valor suficiente para ressarcir seus proprietários pelo valor que pagaram por elas e assim compravam sua liberdade e às vezes também as de parentes muito próximos, quase sempre de suas mães e filhos.
Embora a decisão de libertar em ambos os casos estivesse nas mãos dos proprietários, podemos encontrar posturas bastante diversas mesmo dentro da mesma família. Entre os cafeicultores Pereira Belém, proprietários de terras em Bananal de Itaguaí e Paracambi, vemos casos bem distintos nas decisões de pai e filho. O pai, Pedro Cipriano Pereira Belém (1795-1860), registra em seu testamento que decidiu deixar forros e libertos seus escravos menores de idade Matildes, filha da escrava Mariana; Angélica, parda, filha da escrava Lodovina; e Júlio, pardo, filho da escrava Henriqueta, justificando que o fazia “pelo amor da criação” que tinha por eles. E ainda resolveu instituir por curadores desses menores libertos alguns de seus parentes:
Declaro que instituo por herdeiros remanescentes da minha terça o meu filho Fernando, Francisco e meu genro Manoel por terem os mesmo de ficarem com o amor de tratarem e educarem aos libertos assima [sic] declarados até terem a idade competente para bem se regerem, ou casarem-se.
A decisão de Pedro Cipriano nos faz pensar por que ele teria tido tanta consideração pelos filhos de Mariana, Lodovina e Henriqueta, mas não por elas próprias. A suspeita é que essas crianças fossem suas filhas não reconhecidas. Esse não reconhecimento possivelmente tenha ocorrido apenas por serem as crianças filhas de mulheres escravizadas, pois Pedro Cipriano antes havia reconhecido como seus os filhos que tivera com Maria Tereza da Paz (1791-1855), com quem nunca se casou por já ser ela casada, embora vivesse separada do marido Joaquim Francisco do Rego (1766-1837).
É justamente de Manoel (1830-1875), um dos filhos que Pedro Cipriano teve com Maria Tereza, que vemos atitude bem distinta com relação à decisão de libertar os escravizados nos momentos anteriores à morte. Seu testamento foi publicado na edição 324, de sábado, 27 de novembro de 1875, d’O Globo: Orgão da Agencia Americana Telegraphica dedicado aos interesses do Commercio, Lavoura e Industria.
Faleceu no dia 24 do corrente, às 9 horas, na rua do Conde D’Eu n. 268, Manoel Pereira Belém, nascido e batizado na Vila de Itaguaí, filho de Pedro Cipriano Pereira Belém e Maria Thereza da Paz, já falecido, casado em 2ª núpcias com D. Maria Carolina Dias Belém, de cujo consórcio existem dois filhos, de nomes Otena e Eutrope.
Declarou que do primeiro consórcio existem três filhos de nomes Cornélia, Adelaide e Maria, estas ainda menores e para as quais nomeia por tutor seu sogro e das do segundo matrimônio nomeia por tutora a sua mulher; que não é irmão de ordem alguma; que não liberta nenhum escravo; que tem uma sociedade agrícola com seu sogro Manoel Pereira Dias, na freguesia de Bananal de Itaguaí; que é um de seus maiores desejos que a referida sociedade continue a vigorar por espaço de quatro anos, a fim de satisfazer a todos os seus credores; que possui nove escravos de nomes José, Fortunato, Gabriel, Graciano, Malaquias, Firmino, Romano, Manoel e Maria; que possui diversos bens na freguesia de Bananal em Itaguaí, os quais constam de casas, terras e engenhos, estando todos sujeitos a hipotecas; que até o ano passado esteve quite com seu sócio, devendo ser atendida a escritura que o mesmo apresentar no fim do corrente ano com referência à referida sociedade, que deve continuar sob sua direção; que todos os seus credores são conhecidos de seu sócio; que o contrato que tem em seu nome com o Barão de Itaí é pertencente a seu sogro.
Nomeou testamenteiros, em 1º lugar a seu sócio Manoel Pereira Dias, em 2º a sua mulher e em 3º a José Leocádio Pamplona Couto, à vontade dos quais será feito seu enterro, celebrando-se 5 missas por sua alma e 5 pela de seus pais.
Este testamento foi feito em 17 do corrente, apresentado por Joaquim Fernandes da Silva Martins, e aberto no dia 25 do corrente, às 6 1/2 horas da tarde, pelo Dr. juiz da provedoria, em sua residência.
Manoel Pereira Belém era meio-irmão de meu trisavô Pedro Gomes de Moraes – filho da mesma Maria Thereza da Paz (1791-1855) com o capitão Joaquim Francisco do Rego. Esse texto permitiu conhecer um pouco da história familiar e financeira de Manoel, bem como de sua lamentável fidelidade ao regime escravocrata.
José Araújo é genealogista.