… [o sacramento do matrimônio] se consolidou apenas no século XIII. A partir do Concílio de Trento, em 1545, a Igreja desenvolveu uma doutrina em torno do matrimônio, estabelecendo, inclusive, a necessidade do consentimento dos cônjuges e de seus pais, encarregados de proverem dotes ao casal. | Mary Del Priore – Histórias da Gente Brasileira – Volume 1
Embora fosse considerado uma necessidade para a coabitação entre homem e mulher e o reconhecimento da legitimidade da prole, nem sempre o casamento era uma possibilidade, pois os custos envolvidos eram altos. As taxas que a igreja cobrava pela burocracia matrimonial (banhos e dispensas de consanguinidade) estavam além das posses da maioria da população. Não era, por isso, incomum que os casais vivessem amancebados ou, com a vigência do código civil, casados apenas pelo civil. Muitos ainda protelavam o casamento até os 25 ou 27 anos em regiões como Trás-os-Montes. No sul, ao contrário, casava-se mais cedo, antes dos 24 anos.
No trecho de assento abaixo, extraído de minha árvore de costados, além do registro do casamento, é feito o reconhecimento dos filhos que o casal havia tido, portanto é possível supor que esse casal tivesse vivido amancebado até então.
Aqui a transcrição:
[…] ele, da idade de 43 anos, solteiro, jornaleiro, natural desta freguesia e na mesma batizado e morador […] ella, da idade de 36 anos, solteira, jornaleira, natural do lugar de Safres desta freguesia, e na mesma batizada, filha natural de Maria Pinto, do referido lugar de Safres, […] reconheceram por seus verdadeiros e legítimos filhos, João Luiz, nascido nesta freguesia no dia 8 de junho de 1882 e na mesma batizado no dia 12 do mesmo mês e ano; Maria dos Anjos, nascida nesta freguesia no dia 6 de maio de 1884 e batizada nesta mesma freguesia no dia 23 do referido ano de 1884; Arcelina, nascida nesta freguesia no dia 26 do mês de junho de 1888 e batizada no dia 12 de julho de 1888; Abel, nascido nesta freguesia, no dia 1º de maio de 1890…
O assento registra ainda que os cônjuges eram jornaleiros, isto é, que trabalhavam na lavoura. O casamento nas regiões agrícolas era coordenado com os ciclos de trabalho e a disponibilidade financeira, sendo provável que aumentasse a frequência após as colheitas. A ocupação e a idade avançada do casal corrobora a interpretação de que o casamento pode ter sido adiado por motivos financeiros.
Antes do casamento, anunciava-se a intenção dos noivos nas portas das igrejas onde assistiam às missas a fim de outros se pronunciassem a respeito de eventuais impedimentos. Também realizavam banhos ou proclamas, em que se afirmavam livre para o matrimônio – ou seja, eram batizados, solteiros ou viúvos e não prometidos a outros. Finalmente, se houvesse entre eles algum grau de parentesco até o quarto grau, era necessário obter no bispado uma dispensa de consanguinidade.
Quanto à celebração do casamento, era costume evitar a Quaresma e o Advento. Evitava-se também o mês de agosto e as terças e sextas-feiras, por serem considerados azarentos. Em minha árvore de costados, de 24 casamentos analisados, dois ocorreram numa terça-feira (21 de janeiro de 1817 e 9 de junho de 1868) e nenhum no mês de agosto.
Os noivos vestiam preto, costume que perdurou entre as camponesas até as primeiras décadas do século XX. O vestido branco da noiva não se tornou hábito até a metade do século XIX, e ainda assim apenas se popularizou entre as elites. Também não havia troca de alianças, costume que apenas se tornou frequente na transição do século entre as classes mais elevadas e não era observado entre os camponeses de muitas regiões ainda na década de 1940. Muitos dos costumes que se tornaram habituais no século XX se deveram à influência de manuais de etiqueta traduzidos do francês, e sua influência inicial se deu nos centros urbanos, só mais tarde chegando às províncias.
No interior e nas regiões rurais, costumes mais tradicionais se mantiveram ainda por muito tempo. Nesses lugares, o cortejo que saía da casa da noiva era encabeçado pelo noivo – embora houvesse regiões onde a noiva ia na frente – e os padrinhos, que em muitas regiões deveriam obrigatoriamente ser os de batismo. A noiva podia entrar na igreja sozinha ou acompanhada dos padrinhos e não devia ser vista pelo noivo antes de chegar ao altar para não dar chance ao azar. Entre os analfabetos, as mães não assistiam ao cortejo e, em alguns lugares, os pais de ambos os noivos não participavam da cerimônia. Os presentes dados aos noivos em regiões como Trás-os-Montes eram modestos, em geral utensílios de cozinha e, entre os mais pobres, produtos alimentícios.
A prevalência do casamento civil sobre o religioso só ocorreu de fato a partir da primeira década do século XX, embora já estivesse garantida desde 1865-1866 com a redação do Código Civil. A grande resistência da igreja, inclusive com pressão do Vaticano sobre o poder político, retardou a laicização do casamento, que passou a garantir também aos não cristãos o reconhecimento de suas uniões.
José Araujo é linguista e genealogista.
1 comentário
Genealogia Prática - Paralelos · 26 de agosto de 2018 às 20:04
[…] talvez se explique pelo fato de serem famílias sem posses, que não podiam pagar por um casamento religioso, mas isso só se poderá comprovar mediante a descoberta de outros documentos, tais como […]
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