Aos dezesseis de agosto de mil setecentos e trinta e oito, nesta paroquial, em minha presença e das testemunhas abaixo nomeados, recebeu em matrimônio por palavras de presente, feitas as diligências necessárias na forma do Sagrado Concílio Tridentino e constituições, João Pinheiro, natural da freguesia de São Salvador de Unhão, bispado de Braga, filho exposto em casa de Custódio Teixeira e batizado na dita freguesia, com Francisca Xavier, filha legítima do capitão Miguel Rodrigues de Sá e de Teodósia de Ramos, já defuntos, batizada na freguesia da Sé desta cidade e moradores nesta, como tudo me consta da provisão que me apresentaram do muito Reverendo Doutor Promotor Antônio […] Leite, que serve de juiz dos casamentos. E por me não constar de impedimento algum canônico e terem se confessado, lhes […] e dei as bênçãos, sendo testemunha Francisco Xavier da Silva e Gregório José […] e outras pessoas. De que fiz este assento.
Deste primeiro matrimônio de meu hexavô João Pinheiro de Souza nasceram três filhos: Francisco, João e José, este último nascido pouco mais de um ano antes do falecimento de sua mãe. Cinco anos depois da morte de Francisca Xavier, João Pinheiro estaria casado novamente, desta vez com Paula Pereira Monteiro. Desta segunda, sabemos que ele teve geração e uma enorme descendência que se espalhou pelo sul fluminense e também pelo Espírito Santo e Minas Gerais, entrelaçando-se com famílias como a dos Gomes de Moraes e a dos Werneck, para citar apenas algumas. O assento de seu segundo matrimônio, transcrito abaixo, traz mais detalhes sobre onde João morou antes de vir para o Brasil: São Tiago de Rande.
Aos cinco dias do mês de outubro de mil setecentos e quarenta e três anos, na igreja, digo, pelas cinco horas da tarde, na igreja da Sé Catedral, em minha presença, com palavras de presente, na forma do Sagrado Concílio Tridentino, se recebeu João Pinheiro de Souza, viúvo que ficou de Francisca Xavier de Ramos, morador que foi na freguesia de São Tiago de Rande e batizado na freguesia de Unhão, arcebispado de Braga, com Paula Pereira Monteiro, filha legítima de Manoel Vieira Ribeiro, já defunto, e de sua mulher Luzia Monteiro, natural e batizada na freguesia de Nossa Senhora do Pilar. Foram testemunhas presentes Teodora Coelho [Peres] e Francisco Xavier da Silva e Isabel Maria da Purificação, mulher de Francisco das Chagas, e Elena Correa da Silva, mulher de Bartolomeu de Oliveira e outras pessoas que presentes se achavam. De que fiz este assento era ut supra.
Ao se casar com Paula, João na verdade se casava dentro de uma família que estava presente no Brasil – na Bahia, no Espírito Santo e também no Rio de Janeiro (leia sobre esses pioneiros) – há mais de um século. Certamente se tratava de uma família importante na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro e que começava a expandir sua presença para além do núcleo urbano, que se formou, após a descida do Morro do Castelo, entre este morro e os de São Bento, Santo Antônio e da Conceição. Podemos ter uma ideia do poder e das movimentações da família dela a partir dos registros de compra e venda de propriedades que foram indexados no Banco de Dados da Estrutura Fundiária do Recôncavo da Guanabara (Sécs. XVII e XVIII) pelo pesquisador Mauricio de Almeida Abreu.
O primeiro desses registros indexados data de 17 de novembro de 1702 e é relativo ao aforamento (transferência) de propriedade em área da atual Rua do Rosário que na época ficava perto dos antigos limites da cidade:
Escritura de aforamento de chãos que faz Manoel Pereira … e sua mulher Maria …. a Manoel Vieira Ribeiro – com três braças de testada com todo o quintal que se achar, até entestar com os quintais da casa que foi do Padre Manoel da Fonseca, sitos na rua que chamavam de André de Vilalobos e hoje de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, .. ficam junto à pedra por que se sobe para … e o sertão corre pelo outeiro
Pouco mais de um ano depois, em maio de 1704, Manoel Vieira compra um terreno em área que hoje corresponderia a uma porção da – ou talvez toda a – quadra entre as atuais ruas da Alfândega e da Uruguaiana e a Avenida Presidente Vargas:
Escritura de venda de chãos que fazem Antonio da Rocha de Azevedo e sua mulher Isabel da Silva [Barreto] a Manoel Vieira Ribeiro – com três braças de testada e fundos de rua a rua, com testada para a rua dos Escrivães e para a rua da Quitanda do Marisco, que partem de uma banda com chãos de Antonio Borges Teixeira e da outra com chãos deles vendedores, comprados de Manoel Afonso de Faria e seu cunhado João Soares Filgueira. Preço: 70$000
Em 1705, Manoel Vieira se desfaz – de talvez parte – da propriedade adquirida no ano anterior:
Escritura de venda de chãos que fazem Antonio Correia de Azevedo e sua mulher Isabel da Silveira ao Capitão Paulo Ferreira de Andrade – com três braças de testada, sitos na rua dos Escrivães, indo para o campo ? mão esquerda, partindo de uma banda com chãos de Manoel da Fonseca e da outra com casas de Bartolomeu dos Santos ou quem de direito for, correndo os fundos até a outra rua da Quitanda do Marisco, livres de foro, comprados a Manoel Vieira Ribeiro e sua mulher Luzia Monteiro em 24/7/1705 [2º Ofício].
Se na primeira década do século XVIII o pai de Paula parecia estar interessado em ter propriedades no núcleo urbano, nas décadas seguintes ele parece investir em área muito além dos limites da cidade. No primeiro registro de uma transação com essa característica, datado de setembro de 1713, descobrimos que ele se interessara pela região do Rio de Morobaí, na freguesia de Nossa Senhora do Pilar, que se tornaria atraente por conta da abertura do Caminho Novo para escoamento do ouro da região de Minas Gerais.
Escritura de venda de terras. Que faz Manoel da Costa Romeiro a Manoel Vieira Ribeiro. Sito no rio de Morobaí com 86 braças de testada e 700 de sertão, de uma banda partem com João Francisco e da outra com terras de Inácio de Azevedo. Procedência por herança de sua sogra Ana de Medeiros. Situação sem foro ou pensão alguma.
Menos de um ano depois, em maio de 1714, Manoel se desfaz de uma propriedade – provavelmente a mesma adquirida em 1702 – na região central da cidade, o que talvez sinalize que teve a intenção de se estabelecer nos arrabaldes por tempo prolongado ou definitivamente.
Escritura de venda de duas moradas de casas que fazem Manoel Vieira Ribeiro e sua mulher Luzia Monteiro ao Sargento-mor Antônio de Souza Brandão – térreas, de taipa, sitas em três braças de chãos de testada na rua do Rosário, que fazem canto de uma banda e da outra partem com chãos de quem de direito, correndo os fundos até entestar com os fundos das casas do Licenciado Custódio Fonseca, compradas a Manoel Rodrigues de Morais. Preço: 180$000
Na década de 1720, o pai de Paula adquiriu mais propriedades na freguesia do Pilar, como atestam este registro de janeiro de 1720:
Escritura de venda de terras que fazem Antonio Coelho da Rocha e sua mulher Teresa de Jesus a Manoel Vieira Ribeiro – [com 25,41 ha de área], com benfeitorias de casas de vivenda e árvores de espinho, sitas em Morobaí, herdadas de sua avó Ana de Medeiros.
Escritura de venda de terras. Que fazem Manoel Peixoto da Silva e sua mulher Rosa Maria a João da Costa. Sito 70 braças de terras de testada, no rio de Morobaí, distrito da freguesia de Nossa Senhora do Pilar, de uma banda partem com terras de Manoel de Oliveira, e da outra com terras de Manoel Vieira Ribeiro, correndo fundos até intestar com Inácio de Azevedo. Procedência: compra à Margarida de Souza, viúva de Valentim Barbosa de Matos, em 29/08/1723, por partilha de seu primeiro marido. Situação: sem foro ou pensão alguma. Benfeitoria: livre e desembargada.
Uma evidência de que a família se estabeleceu na região por bastante tempo é que Paula foi batizada na freguesia do Pilar, como se lê neste trecho de seu assento matrimonial de 1743:
Paula Pereira Monteiro, filha legítima de Manoel Vieira Ribeiro, já defunto, e de sua mulher Luzia Monteiro, natural e batizada na freguesia de Nossa Senhora do Pilar
Os diversos registros apresentados sugerem que os sogros de João Pinheiro de Souza eram pessoas de posses que pareciam estar se movimentando na direção da economia proporcionada pela abertura do novo caminho do ouro. Quando estão disponíveis, registros de transação de terras como os apresentados aqui nos ajudam a contar a história de nossos antepassados.
José Araújo é genealogista.