“[…] a Inquisição portuguesa considerava que as famílias cristãs-novas continuavam a transmitir o judaísmo pelo sangue às gerações pós-conversão forçada (1497), não havendo, portanto, chance alguma de um cristão-novo ser um fiel observante da lei de Jesus. Assim, não haveria confissão de fé católica aceita pelo Santo Ofício.” _ Susana Maria de Sousa Santos Severs. Cristãos-novos na Bahia colonial. In: CENTRO DE HISTÓRIA E CULTURA JUDAICA. História dos Cristãos-novos no Brasil. 1ª edição. Editora Jaguatirica, 2017, pp. 57-76

A desconfiança dos inquisidores quanto à fidelidade dos cristãos-novos – judeus batizados à força no século XV – à fé católica era tão grande que ao cristão-novo ou descendente que fosse acusado e preso só restava admitir a culpa e declarar a vontade de se redimir. Sobre os que reiterassem sua fé cristã, por mais verdadeira que fosse a admissão, poderia recair a acusação de serem negativos e, com ela, penas severas que poderiam culminar com o relaxamento à justiça secular, ou seja, à pena de morte.

O facto é que o sangue dos cristãos-novos era considerado impuro, como também seria o dos mouros e dos africanos. Essa condição lhes trazia inúmeras limitações sociais nos domínios territoriais das coroas europeias em que o catolicismo era a religião oficial. Limitações como as de ocupação de cargos eclesiásticos e da administração pública. No mundo real, entretanto, os Estatutos de Pureza de Sangue, que determinavam as tais limitações, poderiam ser ignorados. Assim é que encontramos registros de religiosos com ascendência judaica como o ilustre jesuíta José de Anchieta, e até judaico-africana, como o frei Francisco da Mota, que mandou erguer a igreja de São Francisco da Prainha na região portuária da cidade do Rio de Janeiro.

Igreja de São Francisco da Prainha – Wikimedia

Mesmo na administração pública houve inúmeros casos em que os estatutos citados tornaram-se letra apagada, pois, como afirma a mesma Susana Severs:

[…] nos séculos XVI e XVII os cristãos-novos que viviam em Salvador, sobretudo aqueles ligados à grande produção agrícola e ao comércio de grande porte, tiveram intensa atuação político-econômica em âmbito local. Aliaram-se a cristãos-velhos na condução das diretrizes político-econômica e administrativa do Estado do Brasil e, facultados pela agroindústria do açúcar, tornaram-se parte da “elite da terra”.

Tanto isso é verdade que, nos idos de 1580, vivia em Porto Seguro meu duodecavô Domingos Nunes Sardinha, cristão-novo (sefardita) e meirinho, isto é, funcionário do antigo poder judiciário que corresponde hoje a um oficial de justiça ou antigo magistrado que, nomeado pelo rei, governava um território ou comarca. Assim ele foi identificado em depoimento prestado ao visitador Heitor Furtado de Mendonça durante a primeira visitação do Santo Ofício às terras brasileiras uma década depois. Domingos, portanto, apesar de sua impureza de sangue, exercia uma função administrativa na colônia.

Quando o depoimento foi tomado, Domingos, sua irmã Antônia Rodrigues Sardinha e seu pai Duarte Nunes já viviam no Rio de Janeiro, onde passaram incólumes à vigilância do Santo Ofício (leia sobre sua história aqui). Antônia Rodrigues Sardinha era viúva do também cristão-novo Rui Dias Bravo, com quem teve três filhos, dentre eles uma filha que recebeu o mesmo nome da avó paterna – Branca do Porto – como era costume entre os sefarditas.

Branca do Porto casou-se com Francisco Lemos de Azevedo, que ocuparia a função de alcaide-mor da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro e, segundo afirma o pesquisador José Gonçalves Salvador em sua obra Os Cristãos-Novos e o Comércio no Atlântico Meridional (Ed. Pioneira, 1978, p. 142), era cristão-novo:

Tomem os como exemplo o ajuste que fizeram no Rio de Janeiro a 29 de dezembro de 1610, Diogo de Mariz e o genro João Gomes da Silva, possuidores do engenho “Nossa Senhora das Neves”, no Guaguaral, com o ‘partidista’ cristão-novo Francisco de Lemos de Azevedo.

Francisco é mais um exemplo, no mesmo ramo familiar que descrevi, de cristão-novo que ultrapassou a barreira do sangue e ocupou um cargo importante na administração do Brasil nos tempos da colônia.


José Araújo é genealogista.


José Araújo

Genealogista