Nunca me canso de reiterar a importância da análise dos nomes dos padrinhos de batismo na pesquisa genealógica, pois eles podem revelar relações de parentesco e afinidade com os pais da criança batizada que de outra forma talvez permanecessem desconhecidas. Normalmente os padrinhos eram os avós ou tios da criança, ou ainda seus irmãos mais velhos. Mas também pessoas importantes na sociedade local poderiam ser escolhidas pelos pais. Assim ocorreu no batismo de Paula, filha do capitão João Lopes do Lago, meu antepassado, ele mesmo uma figura importante na então sesquicentenária cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.
É com a imagem e transcrição do assento de batismo da menina que começamos a análise das relações entre seus padrinhos e seus pais:
Em 20 do mês de junho [de 1658] batizei e pus os santos [óleos a] Paula, filha do capitão João Lopes do Lago e sua mulher Maria do Lago. Foram padrinhos o capitão Manoel Caldeira Soares e madrinha Isabel Rangel, mulher do Doutor Francisco da Fonseca Dinis.
O padrinho da menina Paula foi o português Manoel Caldeira, que não tinha parentesco direto com seus pais. No entanto, Manoel fora o segundo marido de Bárbara Pinto de Castilho, esta filha de Manoel de Castilho, de quem já tratei por aqui. Esse Manoel teria recebido um dote dos trisavós de Paula para se casar com Maria da Cunha, que se tornaria bisavó da menina por se casar com outro homem: o cristão-novo Domingos Nunes Sardinha. A escritura desse dote está descrita no Banco de Dados da Estrutura Fundiária do Recôncavo da Guanabara Sécs. XVII e XVIII, compilado pelo pesquisador Maurício Abreu:
Escritura de dote de casamento que fazem João de Basto e sua mulher Maria de Oliveira a Manoel de Castilho para casar com sua filha Maria da Cunha – além de outros bens, doam “em a vargem de Nossa Senhora, a metade das casas em que ele[s] pousava[m], para a parte de Pero da Costa, que é para a parte da Camarara (sic), até entestar com o dito Pero da Costa, e o comprimento do quintal até entestar com o chão de João Lopes [Pinto], com os largos da dita a metade das ditas casas, e assim mais lhe dava[m] a metade do chão que tinha[m] junto do Mosteiro de Jesus, para a parte do dito Mosteiro, e assim mais lhe dava[m] um chão que tinha a dita sua filha em a cabeceira do chão de Aires Fernandes, entre a casa de Pacheco e a ladeira, e assim mais lhe dava[m] a metade de suas terras que tinha[m] em Jorisenogua …..” [Escritura do 1º Ofício].
Isabel Rangel, também conhecida como Isabel Rangel de Macedo, madrinha de Paula, também não tinha relação familiar com os pais da menina. Mas ela é apresentada em função de seu laço matrimonial com o “Doutor Francisco da Fonseca Dinis“, o que sugere que ele era a pessoa importante do casal. Essa importância começa a ser descoberta a partir do que Rheingantz (Vol. II, p. 150) revela a respeito dele:
dr. licenciado JORGE FERNANDES DA FONSECA, n. em Buarcos bisp. Coimbra por volta de 1585 e fal. filho de Francisco da Fonseca (n. em Aveiro) e de Juliana Nunes (n. em Lisboa), casado por volta de 1615 com Beatriz da Costa Homem, n. por volta de 1595 e fal., filha de Aleixo Manuel – o Velho – e de Francisca da Costa Homem. Pais de: 1-1. dr. Francisco da Fonseca Diniz, médico por alcunha “O Gadelha”, n. no Rio por volta de 1616 e fal., casado por volta de 1641 com d. Isabel Rangel de Macedo, n. no Rio (Sé, 1º, 21) bat. a 18.12.1618 e fal. filha de Baltazar de Abreu e de Isabel Rangel de Macedo.
Francisco, então, era chamado doutor por ser médico, mas sua importância talvez resultasse de facto de ele ser neto materno de Aleixo Manoel, um dos homens mais poderosos da jovem cidade do Rio de Janeiro e que foi até nome de uma das antigas ruas do centro da cidade – a Rua de Aleixo Manoel, antes Desvio do Mar – que hoje é chamada de Rua do Ouvidor. O filho homônimo de Aleixo, que se tornaria o homem mais rico da cidade, seria padrinho de casamento dos avós maternos de Paula, atestando uma antiga relação de afinidade entre as famílias:
Em 14 do mês de junho de [1616] às cinco horas da tarde, feitas as três admoestações em três dias festivos nesta Sé matriz, em três dias festivos à missa do dia, e as mais diligências que em direito se requerem na forma do Concílio Tridentino, recebi por palavras de presente com as bênçãos e mais solenidades a Antônio do Lago Prego, filho de André Rodrigues do Lago, já defunto, e de Madalena Gonçalves Prego, naturais de Viana, com Maria da Cunha, filha de Domingos Nunes Sardinha, já defunto, e de sua mulher Maria da Cunha. Foram testemunhas Manoel … dos Rios, Gaspar Caminha, Aleixo Manoel o moço […] Duarte Vaz Pinto, Sebastião Lobo […] e outras muitas pessoas.
Mas parece que o médico Francisco carregava uma mácula de origem – similar à do bisavô materno de Paula – que poderia ter tornado sua vida mais difícil no Brasil colonial: ele era filho de um cristão-novo. Ao menos é o que nos informa José Gonçalves Salvador (1976, p. 35):
O processo de Baltazar de Abreu Cardoso iniciou-se em novembro de 1698, para ser investido no hábito da Ordem de Cristo e receber a tença de 70$000 em recompensa por seus serviços e pelos do sogro Francisco Sodré Pereira. Não tendo produzido efeito as primeiras diligências, realizaram-se outras em 1720, por seu filho, o coronel João de Abreu Pereira. Mas as inquirições revelaram que o bisavô, advogado Jorge Fernandes da Fonseca, natural de Buarcos, no Reino, e que, depois, veio residir no Rio de Janeiro, onde casou com Dª Brites da Costa Homem, carregava a mácula de sangue cristão-novo.
Até onde se conseguiu apurar por registros documentais nem Domingos Nunes Sardinha, bisavô de Paula, nem Francisco da Fonseca Diniz, marido de sua madrinha, sofreram represálias por terem, como se dizia na época, sangue infecto.
José Araújo é genealogista.