Em os dezenove do dito [mês de maio de 1652] batizei e pus os santos óleos a Maria, filha de Estevão Tourinho Pacheco e de Maria de Sousa, sua mulher. Padrinho o capitão Francisco Monteiro […] por sua mulher Ana Malheiro, padrinho Bento da Rocha.

Batismo de Maria Tourinho Maciel

Maria Tourinho Maciel, a mulher cujo registro de batismo se lê acima, casou-se duas vezes, sendo a primeira com Manoel Barbosa Pinto, falecido em 16 de agosto de 1681. Viúva, ela casou-se em 22 de fevereiro de 1682 com o licenciado João Velho Barreto. Deste segundo casamento teve cinco filhos conhecidos: Antônio, Inácio, Maria, Paulo e Teresa.

Todos os filhos de Maria Tourinho carregavam uma mácula de sangue, pois seu marido João Velho era bisneto do cristão-novo Duarte Nunes, que veio morar no Rio de Janeiro nos idos de 1590 após se envolver em conflitos com a Igreja em Porto Seguro. Se pelo ramo paterno os filhos de Maria carregavam uma nota infamante aos olhos da sociedade colonial, pelo ramo materno o quadro era bem diferente.

Maria Tourinho, como sabemos pelo registro de batismo, era filha de Estevão Tourinho Pacheco e Maria de Sousa. Seu pai Estevão, em 6 de junho de 1657, cinco anos após o nascimento da filha, apresentou petição em que tem sua relação familiar descrita em detalhe, como se lê no fragmento transcrito a seguir.

“[…] casado legitimamente com Maria de Sousa de Azevedo, com a qual vive de umas portas adentro, filha do Alferes João Gonçalves de Azevedo e de Maria de Sousa, neta de Afonso Gonçalves, o velho, e bisneta de Martim Afonso de Sousa, todos já defuntos […]

Trecho da petição de Estevão Tourinho Pacheco

O avô materno de Maria Tourinho ocupava o posto de alferes da Fortaleza de Santa Cruz, construção destinada a defender a entrada da Baía de Guanabara na Banda d’Além, defronte à cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, que desde 1567 estava localizada no Morro do Castelo. Se Afonso Gonçalves era obviamente o bisavô materno de Maria, quem seria o Martim Afonso de Sousa identificado na petição como bisavô da mulher de Estevão Tourinho Pacheco?

A resposta a esta pergunta pode ser encontrada nos depoimentos anexos ao requerimento que o avô materno de Maria Tourinho fez justamente para conseguir o posto de alferes na Fortaleza de Santa Cruz. Esses depoimentos descrevem as relações familiares do requerente, como vemos nos trecho relevantes (pp. 4, 11-15) transcritos a seguir .

A imformação de V. Magestade me pede da parte do conselho sobre João Gonçalues dazeuedo, morador no Rio de Janeiro para auer de seruir aos officios de Alferes e goarda dos nauios que entrarão de fóra do Reino naquela Capitania, assim como os eruia belchior Rangel de Macedo: me parece que de tudo o de que fôr encarregado dará boa conta, como o fez nas ocaziois que se oferecerão na dita Capitania como por ser filho de Affonso Gonçalues que nela e outros prezidios seruio a S. Magestade com satisfação, os qoais pay e filho são naturais de São João da Ribeira, termo da Vila de ponte de lima, e proceder da milhor gente daquela Ribeira, sem terem praga de mouro, nem judeu, nem de outra má çeita, e he o dito João Gonçalues dos da governança daquela Capitania, que por estas calidades e ser caualeiro fidalgo, ficão n’ele bem empregados os ditos officios, além que por seus seruiços e de seu pay e do pay e auô de sua molher Martim Afonso de Sousa merece ser onrrado e premiado com os milhores officios daquela terra […] como he casado com maria de sousa filha de gaspar uas et de maria de sousa sua mulher e neta de martim affonso de sousa comendador do habito de xpõ, o qual gaspar uas vejo há quarenta e seus anos em hua nao da India […] casou com hua filha de martim afonço de sousa comendador do habito de xpõ que lhe fez merçe […] et sabe ele testemunha que o dito martim afonço de sousa auo da molher do supricante veio a esta cidade com estacio de saa a conquitar a pouoação et a mandou pouoar conuidados os indios da dita aldea de que era principal et capitão […] que o dito martim affonço de sousa veio [para] a dita cidade em companhia de estacio de saa da Capitania do Espirito santo com setecentos indios pouco mais ou menos de que ele era principal et capitao delles na era de sessenta et tres onde sempre seruio a sua magestade com sua pessoa et indios […]

Pelos depoimentos descobrimos que a avó de Maria Tourinho – Maria de Sousa – era filha de uma Maria de Sousa e que esta última era casada com Gaspar Vaz, homem que veio da Índia e se estabeleceu na capitania do Rio de Janeiro em seus primeiros momentos de existência. Desses mesmos primeiros momentos a História nos conta que as terras cariocas foram conquistadas pelos portugueses em 1567 após uma luta contra os franceses que chegaram em 1555 com Nicolas Durand de Villegaignon para fundar a França Antártica. Ao lado dos franceses lutaram os indígenas tupinambás que ficaram conhecidos como tamoios.

Ao lado dos portugueses lutaram os tupinambás que ficaram conhecidos como temiminós ou índios maracajás, antigos habitantes da Ilha do Governador, de onde haviam sido expulsos pelos tamoios algum tempo antes. Com apoio dos jesuítas e de seus aliados portugueses, os temiminós foram resgatados e transferidos para a Capitania do Espírito Santo, onde conseguiram refúgio, mas tiveram de ajudar na defesa desta capitania, que era frequentemente atacada por indígenas hostis aos invasores portugueses. Durante esse período de exílio no Espírito Santo despontou a liderança do indígena Arariboia, que seria batizado com o nome português de Martim Afonso de Sousa. É a ele que se refere o trecho que nos informa que “o dito martim affonço de sousa veio [para] a dita cidade em companhia de estacio de saa da Capitania do Espirito santo com setecentos indios pouco mais ou menos de que ele era principal et capitao delles” na era de 1563.

O trisavô materno de Maria Tourinho foi, então, o indígena que, pelo apoio que prestou aos portugueses na conquista do território carioca, recebeu terras na Banda d’Além, onde hoje existe a cidade de Niterói. Martim Afonso de Sousa Arariboia não apenas recebeu terras como também a honraria de se tornar um cavaleiro da ordem de Cristo (“comendador do habito de xpõ“). Seus descendentes ocuparam cargos importantes na administração colonial, pelo que o casamento de João Velho Barreto com Maria Tourinho Maciel pode ter preservado sua descendência de possíveis perseguições religiosas por conta do sangue infecto de sua família.

Saiba mais sobre Martim Afonso de Sousa Arariboia lendo esta obra: Arariboia: O indígena que mudou a história do Brasil – Uma biografia de Rafael Freitas da Silva.


José Araújo é genealogista.