É minha opinião que a Genealogia deva ir além do inventário de nomes, datas e locais – que podemos extrair de registros paroquiais, civis e legais – para recriar a ambiência e a vida cotidiana de nossos antepassados. Reconheço que isso nem sempre seja possível, pois, à medida que retrocedemos nos séculos, fontes primárias como cartas, diários e relatos de viajantes, que nos dariam um gosto da vida passada, podem inexistir. É por isso que considero uma preciosidade a obra epistolar publicada em 1655 pelo viajante inglês Richard Flecknoe. Ela será tema do primeiro e segundo textos de uma série que publicarei aqui no blogue nas próximas semanas.
Flecknoe visitou o Rio de Janeiro, cidade onde viveram meus antepassados coloniais, entre janeiro e agosto de 1648, quando era já um homem maduro. Trata-se de uma visita interessante, pois naquele momento Portugal proibia com rigor a visita e permanência de estrangeiros no Brasil por temer que lhes tomassem as riquezas nelas porventura existentes. Flecknoe, no entanto, não seria uma exceção, pois estrangeiros de diversas origens estiveram presentes na colônia luso-americana e de forma bastante ostensiva, praticando atividades comerciais legais e ilegais – caso dos franceses que traficavam o pau-brasil – e até se casando com mulheres brasileiras. Mas vamos aos relatos sobre a cidade do Rio de Janeiro contido na epístola de Flecknoe.
Quando, tendo passado o forte a cerca de uma milha ou pouco mais da entrada da baía, descobrimos a mais aprazível paisagem natural do mundo, do rio ou lago, com cerca de vinte milhas ou mais ao redor, todo salpicado de ilhas verdes, algumas com uma milha de circunferência, outras maiores, outras menores, a cidade situada à esquerda, cerca de duas ou três milhas além do forte, onde havia porto seguro para muitas centenas de navios.
Nessa primeira passagem vemos uma descrição da entrada da Baía da Guanabara após a passagem do morro do Pão de Açúcar. Ela parece refletir a ideia, naquele momento talvez já ultrapassada, de que ali havia um rio ou uma lagoa em cuja margem esquerda ficava o núcleo urbano com seu porto, que o autor avalia como sendo capaz de receber muitos navios.
Se foi por ordem do rei, pelas recomendações do governador (que veio conosco) ou pela caridade dos bons padres, não sei, mas certamente foi uma acomodação tão extraordinária que dinheiro algum poderia ter adquirido o mesmo, não havendo estalagens ou pensões para hospedagem ou alimentação como as nossas. Todos que frequentam estas partes são ou mercadores que se alojam com seus correspondentes, ou homens do mar, que dormem a bordo; nunca homem algum, como eu, fez tal viagem apenas por curiosidade.
Aqui descobrimos que o Rio de Janeiro era uma cidade que não possuía capacidade de receber visitantes, o que não deveria causar estranheza diante do conhecimento de que estes, principalmente se fossem estrangeiros, não seriam bem-vindos. Por outro lado, Flecknoe atesta que havia ali um porto marítimo importante para o comércio. Esse porto se tornaria ainda mais importante a partir do fim daquele século com a descoberta do ouro em Minas Gerais.
A cidade de São Sebastião está situada em uma planície de cerca de uma milha de comprimento, ladeada em ambos os extremos por colinas elevadas, sendo a mais interior, voltada para o lago , habitada e cercada pelos Beneditinos; e a mais exterior, voltada para o mar, pelos padres da Companhia, sobre a qual colina se situava outrora a antiga cidade (como testemunham as ruínas das casas e a grande igreja ainda remanescente), até que, por conveniência do comércio e importação de mercadorias, foi gradualmente transferida para a planície.
Essa descrição da geografia urbana é apenas parcial, pois, de fato, até o século XVIII, a cidade estava contida no quadrilátero delimitado pelos morros do Castelo – a tal “colina [onde] se situava outrora a antiga cidade” – , de São Bento – a colina “habitada e cercada pelos Beneditinos” – , da Conceição e de Santo Antônio. Interessa ressaltar que, segundo testemunho de Flecknoe, o Morro do Castelo já estava praticamente abandonado menos de cem anos depois de sua ocupação em 1567, restando nele apenas casas em ruínas e uma “grande igreja”, que seria ou a Sé de São Sebastião ou a igreja dos jesuítas – o autor não esclareça esse ponto.
Suas edificações são baixas e as ruas não ultrapassam três ou quatro, sendo a principal voltada para o porto. Atrás da cidade há uma grande planície de cerca de duas milhas de extensão, parte dela coberta de arbustos, parte de matas, e parte de prados, além dos quais se encontra um país tão diferente do nosso que não há ali árvore, planta, ave, besta ou qualquer coisa que já se tenha visto na Europa.
Nessa passagem, enfim, se Flecknoe expressa desapontamento com a simplicidade do núcleo urbano carioca, no qual ele observou apenas três ou quatro ruas onde havia construções baixas, por outro lado revela assombrado com a exuberância da natureza que cercava a cidade para além de seus limites geográficos, que naquela época eram as tais colinas citadas antes.
Flecknoe relaciona em sua epístola grande número de alimentos vegetais consumidos pelos cariocas, alguns nativos e outros, como ele descreve, transplantados, ou seja, trazidos da Europa e de outras terras dominadas pelos portugueses. Na relação que inclui árvores frutíferas como bananeiras, cajueiros, goiabeiras, laranjeiras, limoeiros e mamoeiros, ele menciona uma planta nativa não frutífera que ele não nomeia, mas certamente seria a mandioca, cuja raiz os portugueses aprenderam a consumir com os nativos da terra. Da farinha dessa raiz, ele informa, os brasileiros teriam encontrado um substituto superior ao pão de cereal que se consumia na Europa.
Há ainda outra árvore, cuja raiz, quando seca e o seu sumo extraído (que é veneno mortal), serve para fazer sua farinha de pau, como a chamam, que utilizam no lugar do pão. Quando fresca e recente, é como migalhas de pão de trigo; quando envelhecida, como farinha de aveia moída. Em cada prato colocam montes dessa farinha e, embora o pão (feito com cereal trazido de Portugal e das ilhas ocidentais) não seja escasso nem caro, a maioria dos habitantes prefere comer dessa farinha.
Ainda entre os alimentos, Flecknoe relaciona animais de criação trazidos da Europa como bois, cabras, ovelhas e porcos, fontes complementares de proteína para os cariocas que já contavam com os abundantes peixes disponíveis nos rios e no mar. Os bovinos, além de prover alimento, eram também explorados nos engenhos de açúcar, onde faziam girar as moendas, como o autor informa citando ainda o enorme rebanho que pertencia aos jesuítas.
Onças, tigres e leopardos eles também têm como bestas selvagens, e como bestas domesticadas têm ovelhas, porcos, cabras e bois (todos importados), que se reproduzem ali em tanta abundância, especialmente este último tipo (que eles criam tanto para alimentação quanto para trabalho, para mover seus engenhos de açúcar), que os padres da companhia têm para si (não longe do Rio) mais de 20 mil, todos pastando em uma só pastagem.
O visitante nos dá testemunho da importância da indústria açucareira para a economia carioca e ainda nos dá ciência não só do ciclo de plantio e colheita da cana como também da tecnologia de extração do suco para produção do açúcar.
Agora, sobre o açúcar, eis como ele cresce e é produzido: suas canas de açúcar são podadas à altura de se manterem como o milho em pé. E não carecem de outro cultivo senão que, a cada dois anos, sejam cortadas rente às raízes, como fazemos com os vimes, e no ano seguinte nunca falham em brotar novamente. As folhas dessas canas são de um verde agradável e, de longe, parecem um campo de milho, o qual, estando maduro por volta do mês de junho, é cortado em pedaços de cerca de um pé de comprimento e levado ao moinho, movido por bois ou água, composto de dois cilindros redondos, do tamanho de marcos de milhas, revestidos de ferro, que girando para dentro, se unem tão próximos quanto podem se encontrar e assim espremer as canas ao passarem por eles, saindo do outro lado todas esmagadas e secas como bagaços, sendo que antes estavam todas líquidas. Esse líquido é conduzido por calhas até uns caldeirões, onde é fervido, ainda mantendo sua cor de âmbar, até ser finalmente despejado em suas formas ou resfriadores com certo lectis que o torna branco.
Interessante, no entanto, é a percepção que ele demonstra no trecho seguinte de que a imposição da monocultura açucareira em uma terra tão fértil seria uma estratégia para assegurar que a colônia permanecesse submissa e dependente da coroa portuguesa.
Quanto ao resto, não produz nem trigo, nem vinho, nem sal, o que atribuo não tanto à diferença do clima, mas a alguma razão política para mantê-los nessa necessária dependência de Portugal para escoar suas mercadorias e prevenir a revolta.
Com esse trecho encerro a análise de alguns segmentos da epístola de Flecknoe sobre sua visita ao Rio de Janeiro em meados do século XVII. Embora a epístola não nos forneça uma riqueza de detalhes sobre a vida cotidiana de meus antepassados que viviam na cidade do Rio de Janeiro, a leitura sugere que eles vivessem em uma cidade modesta em termos arquitetônicos, mas que, de modo geral, poderiam ser acolhedores aos visitantes estrangeiros. Ao mesmo tempo, tenho a impressão de que a população carioca daquela época já estivesse adaptada ao ambiente físico e aos elementos da cultura dos nativos de que se apropriara. Por outro lado, no trecho “para escoar suas mercadorias e prevenir a revolta” – Flecknoe deixa transparecer que havia entre os cariocas um potencial para a rebelião face ao domínio feroz da coroa portuguesa.
Essa rebelião de facto ocorreu no século seguinte na região das Minas Gerais, quando a coroa determinou o aumento dos impostos durante a decadência do ciclo do ouro. Mas isso é outra história.
José Araújo é genealogista.