Neste quarto texto da série sobre a proposta de uma Genealogia que recrie aspectos da vida cotidiana dos antepassados vou tratar das formas de socialização e dos costumes. Aqui quero sugerir os processos inquisitoriais como peças relevantes não apenas para comprovação da condição cristã-nova de algum antepassado, mas também como fonte preciosa para o conhecimento sobre a alimentação, o trabalho e as formas como nossos antepassados se relacionavam com seus vizinhos – ou se tornavam desafetos deles. O caso em destaque tem relação com o português Bento Teixeira (1561-1618), “mestre de gramática” que viveu em Pernambuco e foi o autor do que se considera o primeiro poema épico da literatura brasileira: Prosopopeia.

Bento era natural do Porto e já estava no Brasil em 1567. Após a morte dos pais, foi viver em Ilhéus, na Bahia, onde se casou com a cristã-velha Filipa Raposo, que o acusou de ser judeu praticante e foi por ele assassinada. Em agosto de 1595, o visitador do Santo Ofício Heitor Furtado de Mendonça ordenou que o mestre fosse preso em Olinda “por culpas que dele há contra nossa santa fé católica”, como se lê no mandado de prisão expedido e que pode ser lido nas primeiras páginas do processo, que está digitalizado e pode encontrado no sítio da Torre do Tombo. A acusação no caso, além do crime de uxoricídio, era de comportamento judaizante. Sim, Bento era cristão-novo, o que naquele tempo o deixava sob constante escrutínio de seus vizinhos e das autoridades eclesiásticas.

Em algumas das mais de 400 páginas do documento tomamos conhecimento das acusações que foram feitas contra Bento, bem como de seu testemunho contra pessoas que ele suspeitava que pudessem ser desafetos e poderiam ter feito acusações contra ele. Por seu testemunho sabemos que Bento havia sido muito próximo da família do cirurgião cristão-novo Afonso Mendes – mais conhecido como mestre Afonso – , que viera com a mulher Maria Lopes e filhos – de uma das quais eu descendo – para o Brasil em 1557 acompanhando o governador-geral Mem de Sá, de quem se tornou médico pessoal.

O réu Bento fora professor dos meninos Sebastião de Peralta e Belchior de Babintão, respectivamente neto e bisneto de mestre Afonso e de Maria Lopes. O primeiro era filho de Ana de Oliveira e o segundo, de Maria de Peralta, ambas acusadas ao Santo Ofício pelo crime de comportamento judaizante. Mas foi a então falecida Maria Lopes – já viúva de mestre Afonso – o alvo de suspeitas levantadas por Bento em seu testemunho. Sabemos que ele fora mal gestor de suas finanças pessoais e que em algum momento tomou vinte e mil réis emprestados da mulher, mas nunca devolveu o dinheiro. A desavença entre eles talvez se explique por cobranças que ela tenha feito pela devolução do dinheiro emprestado.

Bento pintou um quadro desfavorável de Maria: após a morte do marido, ela ficou amancebada de Henrique Rodrigues de Barcelos, tio dele, que foi, nas últimas décadas do século XVI, junto com seu irmão Diogo Fernandes Vitória, seu pai Duarte Fernandes Vitória e o primo deste Manoel de Medeiros, proprietário de ao menos um engenho de açúcar na capitania de São Vicente. Eis o que Bento disse da desafeta:

5º. E como é verdade, como antes de se ir, teve palavras com João Vaz Serrão e sua mulher Leonor da Rosa pelos respeitos que tudo tem na Mesa do Santo Ofício no mês da graça e também sua irmã Maria Lopes, mulher que foi de Mestre Afonso, por ele dito Bento Teixeira não querer levar algumas vezes os presentes que lhe mandava seu tio Henrique Rodrigues Barcelos que estava amancebado com ela publicamente e também por ele dito Bento Teixeira chamar publicamente Maria [de] subtil, pelas manhas e ardis que usava com o dito seu tio, pelos quais respeitos assim a dita Maria Lopes, João Vaz e Leonor da Rosa, irmã da dita Maria Lopes, lhe tinham capital ódio, dizendo que eles o [teriam] em tal estreiteza que só Deus lhe seria bom.

Processo de Mestre Bento Teixeira (ANTT, 1595)

Para o réu, a inimizade entre ele e Maria se devia à relutância dele em entregar a ela os presentes enviados pelo rico tio. Mas sabemos que a razão poderia ser a tal dívida, que Bento jamais pagou. Maria faleceu em agosto de 1591, pouco depois de prestar dois depoimentos ao visitador Heitor Furtado de Mendonça na Bahia. Bento faleceu no cárcere em Lisboa no final de Julho de 1600.

Depoimentos prestados nos processos inquisitoriais precisam ser lidos com cautela, pois acusações feitas contra um antepassado podem resultar de desavenças pessoais. Mesmo nessa situação, no entanto, temos a possibilidade de entender como se construíam os relacionamentos entre pessoas que tinham condição diferente – p. ex. cristãos-velhos x cristãos-novos, como no caso de Bento, que matou a mulher que o traíra com a revelação sobre seu comportamento judaizante – e mesmo condição igual – como no caso de Bento e Maria, que deveriam gozar de confiança mútua por serem ambos cristãos-novos, mas tiveram essa relação prejudicada pela traição dele ao não devolver o dinheiro emprestado.


José Araújo é genealogista.


José Araújo

Genealogista

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