Os assentos de óbito dos séculos passados podem fornecer ao pesquisador uma riqueza de informações que talvez pareçam irrelevantes ao leitor incauto. Boa parte dessas informações é encontrada nos trechos em que se transcrevem as disposições testamentárias do falecido, isto é, o que ele declarou em seu testamento a respeito de sua família, de seus bens e do que desejava que fizessem por seu corpo e sua alma (o pio). Ler com atenção essa seção pode fornecer pistas relevantes sobre as relações de parentesco e compadrio do falecido, bem como sobre suas afiliações religiosas.
Em alguns casos, o moribundo poderia reconhecer filhos que tivera fora do casamento, com mulheres solteiras e/ou escravizadas, como se vê abaixo no testamento de meu antepassado, o baiano Gaspar Cordeiro, falecido no Rio de Janeiro:
Aos trinta e um de março de mil seiscentos e setenta e três faleceu Gaspar Cordeiro. Recebeu os sacramentos [e] fez seu testamento e nele pedia à santa Irmandade da Misericórdia, [de] que fora muitos anos irmão, que o enterrassem pelo amor de Deus […] a venerável Ordem Terceira do Carmo da qual era terceiro e assim foi sepultado na dita Igreja do Carmo, amortalhado no mesmo hábito. Acompanharam seu corpo o seu pároco com seus clérigos e os religiosos do Carmo. Nomeou por seus testamenteiros a seu filho Tomás Cordeiro e Antão Cosme, aos quais pedia fizessem bem por sua alma. // Declarou que tinha em sua casa uma negra por nome Mariana a qual era forra e por tal a trouxera da Bahia, da qual [tivera] uma filha à qual deixava por esmola o enxoval de [Crisma?] e roupa e tudo mais que se achar. // Declarou mais que tinha outra filha mulata por nome Marcelina, a qual é livre e forra por carta que lhe dera. // Declarou que dois mulatos que ficaram forros um forrara por ser seu neto e outro que o forrou […] de serviços que a seu pai […] e não continha mais quanto ao pio. De que fiz este assento.
O moribundo poderia, involuntariamente, esclarecer algo sobre sua naturalidade que não tivesse ficado claro em registros anteriores. No caso abaixo, havia dúvida sobre a naturalidade de Antônio de Peralta, filho de Gaspar Cordeiro, pois seu assento matrimonial informava que ele, seus pais, sua noiva e seus sogros eram “todos naturais desta cidade [do Rio de Janeiro]”. Em seu testamento, no entanto, ele declarou que era “natural da cidade da Bahia” (sic) e ainda informou que não teve filhos com a mulher com quem se casou. E mais: talvez ele tenha esclarecido a identidade de uma das mulheres de Gaspar Cordeiro, não mencionada no assento de óbito deste, que se leu acima.
Aos vinte e um dias do mês de maio de mil e setecentos e dois, faleceu Antônio de Peralta. Recebeu os santos sacramentos, fez seu testamento, nomeou por seus testamenteiros sua mulher Paula Barbosa e a seu cunhado o licenciado padre Manoel Barbosa […] Declarou que era natural da cidade da Bahia, filho legítimo de Gaspar Cordeiro e de Maria de Peralta, já defuntos, e que era casado com Paula Barbosa, da qual não teve filhos […]
A declaração dos herdeiros, especialmente dos diretos – mulher, filhos – tem imenso valor genealógico, pois pode orientar a busca por registros relativos a essas pessoas. Tomás Cordeiro de Peralta (1625-1701), outro filho do já conhecido Gaspar, não declarou em seu testamento os nomes de seus filhos, mas ao menos informou quantos estavam vivos antes de sua morte, como vemos a seguir, o que foi de grande ajuda na identificação deles.
Em dezoito de abril de mil e setecentos e hum, batizei, digo, faleceu Tomás Cordeiro, […] a seu filho Gaspar Cordeiro. Mandou sepultar seu corpo na capela dos terceiros do Carmo, de que era irmão professo, e que fosse amortalhado no hábito […] e que acompanhassem quatro sacerdotes e os religiosos de Nossa Senhora do Carmo […] mandou que lhe […] quatro bulas […] e quatro […] defuntos. Declarou que tinha seis filhos vivos que eram seus herdeiros […] acabou quanto ao pio.
Essas disposições relativas ao parentesco e aos bens são valiosas, mas também as disposições relativas ao que a pessoa desejava que fizessem ao seu corpo e quanto ao pio, isto é, para salvação de sua alma, podem ser bastante informativas. Um caso que me ocorre agora é o de minha oitava avó Rosa Maria de Melo Fróes (1682-1760), em cujo testamento ela pede que determinadas pessoas, nomeadas como seus testamenteiros, tomassem algumas precauções relativas ao seu sepultamento.

Rogo ao senhor Manoel dos Santos Neves, em primeiro lugar, e em segundo a sua mulher Joana Maria de Moraes, em terceiro a meu genro João Pacheco Cordeiro queiram, por serviço de Deus e por me fazerem mercê, serem meus testamenteiros. // Meu corpo será sepultado na campa de meu […] na capela do Senhor dos Passos do congregado de Nossa Senhora do Monte do Carmo por ser [linha …] herdeira da dita campa e sepultura e será meu corpo amortalhado no hábito de Nossa Senhora do Monte do Carmo. // Declaro que [se eu] falecer fora da cidade em parte onde não possa ser enterrada na dita sepultura, será meu corpo enterrado na freguesia onde eu falecer, [dando-se] para isso a esmola costumada. […]
Neste trecho curto em que Rosa Maria especifica que deseja ser enterrada na campa de sua família na capela da igreja que seria a Sé da cidade, ela ainda pede que seus testamenteiros tomem a precaução de sepultá-la na freguesia onde ela se encontrar se falecer fora da cidade e distante dela. Pois foi exatamente o que ocorreu, e ela foi enterrada em “sepultura de fábrica” na igreja paroquial de Nossa Senhora da Apresentação do Irajá, que foi a primeira freguesia rural do Rio de Janeiro, bem distante da cidade, como se lê em seu assento de óbito transcrito abaixo.
Aos sete de novembro de mil e setecentos e sessenta faleceu da vida presente Rosa Maria de Melo, viúva, com todos os sacramentos. Foi sepultada dentro desta igreja paroquial de Nossa Senhora da Apresentação de Irajá em uma sepultura de fábrica e fez seu testamento na forma abaixo. De que fiz este assento. E foi amortalhada no hábito de Nossa Senhora do Carmo.
Ainda que não tenha sido sepultada na sua campa na capela de sua escolha, Rosa foi amortalhada no hábito de sua irmandade. Casos em que o moribundo declara onde deseja ser sepultado e o hábito da irmandade com que deseja ser amortalhado eram comuns, mas esse foi o primeiro caso em que houve tanta preocupação em estabelecer três testamenteiros e um plano alternativo para sepultamento. Fica como curiosidade.
José Araújo é genealogista.