Fontes documentais para a pesquisa genealógica como assentos paroquiais, certidões, inventários, notícias de jornal e fotografias são bastante conhecidas e já tiveram seu uso demonstrado em diversos textos aqui no blogue. Mas nunca imaginei que se pudessem extrair informações de interesse genealógico – ou para a história familiar – dos álbuns de recordações. Pois foi o que descobri quando analisei as caixas de documentos que herdei de uma tia materna.

Esse gênero de escrita – em inglês chamado de scrapbook – pode ser encontrado no formato de livro ou caderno de recortes para armazenar fotografias, bilhetes, recortes de revistas e até pequenos objetos que servem para preservar memórias e recordações de algum período da vida da pessoa. O álbum de minha tia é um caderno pautado de capa dura que contém apenas textos escritos à mão entre 1945 e 1946 por pessoas de seu afeto e relacionamento – minha mãe e meus tios e vários de seus amigos ou colegas de escola -, seguidos ou não de uma dedicatória.

Na primeira página, logo abaixo do título e da assinatura de minha tia, está declarado que o objeto tem relação com sua vida escolar e mais especificamente ao 4º ano ginasial. Em sua dedicatória, meu tio Rubens declarou que “este ano deves terminar o curso secundário”, delimitando o valor do objeto como importante para recordação do encerramento de um ciclo da vida estudantil da irmã, que tinha na época 18 anos de idade. À exceção dos parentes diretos, não pude identificar a maior parte dos autores dos textos, mas dois deles tiveram o mesmo autor: Armando, meu tio por casamento com Genny, irmã de minha mãe e da dona do álbum.

Tio Armando foi pracinha na Segunda Guerra, e ambos os textos que ele registrou no álbum dizem respeito a essa experiência, de que não restaram muitos registros oficiais, segundo descobri após pesquisa nos arquivos do Exército. Os textos falam das saudades e da carência afetiva que devem ter sido experimentadas por todos os militares que enfrentaram os soldados alemães mais bem equipados e acostumados aos rigores do inverno europeu. Aqui vou trazer apenas o segundo texto, que transcrevo ipsis litteris.

“Espere por mim”

Espere por mim, que voltarei!
Mas é preciso que espere com fé e de
todo coração!
Espere por mim
na tristeza infindável dos dias de chuva;
Espere por mim
nas horas uivantes em que a neve cai.
Espere por mim
na ância sufocante que vem do calor
Espere por mim
mesmo que todas as outras
que esperam por outras
já tenham cessado de esperar…
Espere por mim.
Espere, sim,
que hei de enfrentar a morte…
mas voltarei!

No verso da página lê-se esta dedicatória, que também transcrevo ipsis litteris:

Á estimada Nelza

Neste simples verso, poderás observar perfeitamente, quão forte foi nosso “moral”; durante toda a campanha de guerra. a despeito das ásperas condições de um teatro de guerra. Ele foi feito n’um qualquer ponto do front, por um elemento da F.E.B…

Armando

Por esta sabemos que não se trata de um poema autoral, mas de um texto de autor identificado apenas como “um elemento da F.E.B.” e que deve ter circulado entre os soldados que estiveram no teatro de guerra. O primeiro texto que meu tio registrou no álbum – relativo à frieza das mulheres italianas, caracterizadas como insensíveis diante da “carência afetiva” dos soldados brasileiros – não teve autoria nomeada, o que faz pensar que também possa ter sido um texto de autor anônimo que circulou entre cerca de 25 mil combatentes nacionais que foram para o teatro de guerra, dos quais quase 470 não retornaram e são hoje homenageados no Monumento Nacional aos Mortos da Segunda Guerra Mundial no Rio de Janeiro.

Monumento Nacional aos Mortos da Segunda Guerra Mundial (MNMSGM)

Não obstante os textos manuscritos por Armando no álbum terem outra autoria, percebo que a intenção dele foi de deixar à jovem cunhada recém-formada alguma lição a partir de uma experiência de vida de grande impacto psicológico. É apenas uma suposição, mas parece fazer sentido e ajuda a criar um quadro bem mais complexo do que o que pude extrair das informações oficiais que obtive da instituição a que ele esteve vinculado. Criar um quadro mais complexo da vida de nossos antepassados, indo muito além do acúmulo de datas e documentos, está no cerne do que entendo por fazer Genealogia.

A quem interessar, compartilho a relação nominal dos pracinhas mortos na Itália e que estão sepultados no MNMSGM, a qual requisitei por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI).


José Araújo é genealogista.


José Araújo

Genealogista