Descendemos de humanos que deixaram o continente africano há cerca de 100 mil anos e se espalharam pelos continentes, portanto todos nós temos uma origem africana remota. Muitos de nós, no entanto, temos uma origem africana mais recente, que pode ser atestada pelo nosso fenótipo ou pela nossa árvore genealógica contemplando ao menos os últimos 200 anos. Outra forma de atestar essa ascendência africana recente é por meio de um teste de DNA autossômico desses que são vendidos por empresas como 23&Me, Ancestry, Genera, MundoDNA e MyHeritage. Quem já fez um teste desses pode ter encontrado nos resultados informações de ancestralidade global que o/a ligam a regiões como África Central, África do Norte ou Magrebe, África Ocidental ou África Oriental. A simples revelação de estar relacionado a uma dessas regiões não deve, no entanto, levar à conclusão de que existe na árvore familiar um antepassado africano escravizado, e é importante entender o porquê.
Na ausência de prova documental que permita supor uma ascendência africana, as únicas formas de evidenciar tal ascendência seriam a indicação de que o DNA autossômico informa relação étnica com África Central, África Ocidental ou África Oriental ou ainda a realização de um teste de DNA mitocondrial, que analisa exclusivamente a linhagem materna (mãe, avó, bisavó e assim por diante) nos últimos 100 mil anos. Se um teste mitocondrial traz como resultado um haplogrupo iniciado pela letra L seguida ou não por números e outras letras (p. ex. L1c2a3b), a ascendência africana é dada como certa. Meu fenótipo, por exemplo, é interpretado como europeu na sociedade brasileira, para a qual eu sou branco, mas meu DNA mitocondrial é exatamente o L1c2a3b, cuja prova documental correspondente mais remota que pude obter me liga a uma mulher chamada Ana Maria Xavier, descrita na documentação como parda forra, ou seja, uma mulher mestiça de pai branco e mãe africana ou de mãe filha de pais africanos.

Em muitos casos, no entanto, os clientes dessas empresas que oferecem testes de DNA encontrarão em suas ancestralidades globais a indicação África do Norte ou Magrebe. Muitos desses clientes saberão apenas que têm – ou poderiam ter – origem portuguesa em ambos os costados e ancestrais com fenótipo europeu ibérico. Eles poderão se perguntar – e com razão – o que significa essa indicação específica e há ao menos duas explicações possíveis. A primeira pode ter relação com o início do tráfico transatlântico no leilão de 235 cativos realizado na cidade de Lagos, no Algarve, em 8 de agosto de 1444. Os cativos eram berberes de etnia azenegue, habitantes da parte ocidental do Saara, onde hoje se encontra a Mauritânia, e provavelmente eram muçulmanos. Eles habitavam justamente a região conhecida como Magrebe, que inclui ainda os territórios atuais da Argélia, da Líbia, do Mali, do Marrocos, da Mauritânia e da Tunísia. Nos séculos seguintes, milhares de africanos foram traficados para surprir a carência de mão de obra em Portugal decorrente da emigração masculina para ocupação e exploração das terras dos Brasil e deixaram descendentes, que por muito tempo ignoraram sua origem africana.

A segunda explicação, com maior chance de acerto, resulta de estudos genéticos da população portuguesa e se revela bem mais complexa. Por essa explicação, a presença genética norte-africana em Portugal, especialmente detectável pelo haplogrupo mitocondrial U6, revela contatos muito antigos entre a Ibéria e o Norte de África, que se mostram difíceis de distinguir da influência islâmica medieval no período de ocupação da Península Ibérica por povos árabes e berberes, entre 711 e 1492, também conhecido como ocupação moura. O haplo U6 é mais frequente no Norte português do que no Sul, o que parece contrariar a lógica do domínio muçulmano em que se esperaria maior predominância em Portugal meridional devido à proximidade geográfica com o Magrebe. A explicação parece ser multifatorial, envolvendo desde migrações pré-islâmicas, cruzamentos assimétricos e até a instalação preferencial de berberes nas regiões menos férteis de Portugal setentrional. Pode estar nesses fatores a explicação para os meus 9% de ancestralidade magrebina, afinal meus ramos familiares portugueses documentados até o século XVIII têm origem no Norte (Braga, Porto, Vila Real) e Centro (Coimbra, Lisboa, Santarém e Viseu) do território lusitano.
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José Araújo é genealogista.