Os depoimentos prestados no processo do padre José de Anchieta e publicados em artigo do volume 3 da Revista ASBRAP revelam-se uma fonte riquíssima de informações a respeito dos primeiros habitantes da cidade do Rio de Janeiro e seu termo. A leitura minuciosa desses depoimentos e o cruzamento de informações com genealogias já conhecidas podem revelar filiações de que os grandes mestres genealogistas do passado sequer suspeitavam. Assim foi, por exemplo, com a análise do depoimento de Duarte Nunes da Cunha, filho de Domingos Nunes Sardinha e Maria da Cunha.

De Domingos Nunes Sardinha sabe-se que era filho do cristão-novo Duarte Nunes e de sua mulher Maria Fernandes e irmão de Antônia Rodrigues Sardinha. A família de Duarte vivia em Porto Seguro, Bahia, e de lá partiu, após problemas com a Igreja, na virada do século XVI, com destino às capitanias do sul. Já no século XVII, encontramos Domingos Nunes vivendo no Rio de Janeiro e casado com Maria da Cunha. O casal teve ao menos quatro filhos de que se tem registro documental: Maria da Cunha, Duarte Nunes da Cunha, Domingos da Cunha e Antônia Tavares de Oliveira. Este último nome, por sua composição sui generis, nos ajudará muito adiante.

Sobre a família da mulher de Domingos nada se sabia ao tempo em que Carlos Rheingantz escreveu a sua obra sobre as primeiras famílias do Rio de Janeiro, mas evidências coletadas em documentos paroquiais, em depoimentos prestados no processo anchietano e pelo reconhecimento dos costumes de nomeação nos tempos coloniais me permitem afirmar que é sim possível conhecer a filiação dessa mulher. E o raciocínio inicia se pela análise do já citado depoimento de Duarte Nunes da Cunha.

28-Duarte Nunes da Cunha (ouvido a 22 de abril de 1622), natural do Rio de Janeiro, com cerca de 26 anos de idade, filho de Domingos Nunes Sardinha e de Maria da Cunha. Contou sobre a cura de um netinho de Lourenço de Sampaio, filho de Antônio de Mariz e de sua filha Paula da Cunha.

Chama atenção nesse curto depoimento o facto de não restar esclarecida relação entre quatro das pessoas nomeadas – Duarte, Lourenço, Antônio e Paula. No entanto, não se pode deixar de perceber que Paula tem o mesmo sobrenome familiar materno de Duarte Nunes: Cunha. A relação das outras três pessoa citadas é conhecida por Rheingantz: Paula da Cunha, mulher de Antônio de Mariz, era filha de Lourenço de Sampaio com Francisca da Cunha. A recorrência deste último sobrenome, suspeitei, não poderia ser mero acaso. Lourenço e Francisca tiveram ainda uma filha chamada Maria Tavares, a qual foi madrinha no batizado de Prudência, filha dos mesmos Antônio de Mariz e Paula da Cunha, como se lê na transcrição abaixo.

Batismo de Prudência

Em os 24 dias do dito mês e ano de 625, batizei eu, coadjutor Francisco Gomes da Rocha, a Prudência, filha de Antônio de Mariz e sua mulher Paula da Cunha. Foram padrinhos Antônio de Sampaio e Maria Tavares, moça donzela, filha de Lourenço de Sampaio. E teve óleos.

Prudência teve como padrinhos seus tios maternos Maria Tavares e Antônio de Sampaio, que é certamente o mesmo que na Genealogia Paulistana de Silva Leme (Vol IV – Pág. 422 a 423 – Título Almeidas Castanhos) é identificado como:

ANTÔNIO DE SAMPAIO (o Procossoque de alcunha), natural do Rio de Janeiro, comendador de S. Bento de Aviz, filho de Lourenço de Sampaio, natural do Rio de Janeiro, e de Francisca da Cunha, por esta neto de João de Bastos e de Maria de Oliveira, naturais de Vianna do Minho; por Lourenço de Sampaio, neto de Antônio de Sampaio, capitão de infantaria, que veio da Bahia com o governador geral Mem de Sá, a conquistar e fundar a cidade do Rio de Janeiro em 1567, e de Maria Coelho, natural de S. Vicente, f.ª de André Pires, nobre povoador de S. Vicente. Antônio de Sampaio foi casado com Francisca de Almeida […]

Destaco agora a recorrência do sobrenome Tavares, já observado no nome da filha de Maria da Cunha e Domingos Nunes Sardinha – Antônia Tavares de Oliveira, irmã do depoente Duarte Nunes – e agora visto no da filha de Francisca da Cunha – Maria Tavares. Novamente, não creio que seja acaso. A origem do sobrenome Oliveira, enfim, penso ficar esclarecida no trecho de Silva Leme já citado e na filiação de Maria e Francisca da Cunha, que pode ser ratificada a partir das análises de outro depoimento no processo anchietano, da obra de um genealogista conhecido e de um registro de escritura indexado pelo pesquisador Maurício de Almeida Abreu em seu Banco de Dados da Estrutura Fundiária do Recôncavo da Guanabara.

Vamos primeiramente analisar o depoimento, prestado em 1622, pela portuguesa Maria de Oliveira:

32-Maria de Oliveira (ouvida a 2 de maio de 1622), viúva de João de Basto, natural de Lisboa, com cerca de 60 anos de idade, filha de Martim Afonso e de Antônia de Oliveira, já falecidos. Já passava de 30 anos que conhecera ao Padre Anchieta, e o conhecera por espaço de 12 anos. Estando ela prenhe, e indo seu marido João de Basto daqui para fora, em companhia do Padre José e do compadre dela, Aires Fernandes, para Magé, seis léguas desta cidade. Anchieta, antes de celebrar a missa, e instado que rezasse pelo bom sucesso do parto, comunicara a eles que fora feliz o parto.

O nome da mãe da depoente Maria de Oliveira é muito similar ao da filha de Domingos Nunes Sardinha e Maria da Cunha – Antônia Tavares de Oliveira. Sabe-se que era costume naqueles tempos dar aos filhos os nomes de seus avôs e avós paternos e maternos de acordo com a ordem de nascimento: o primogênito recebia o nome do avô paterno; a primogênita, o da avó paterna; o segundo filho, o do avô materno; a segunda filha, o da avó materna. Os filhos seguintes poderiam receber os nomes de seus tios paternos e maternos. Antônia Tavares de Oliveira não parece ter sido a primogênita, conforme análise feita na obra Duarte Nunes o cristão-novo e sua descendência no Brasil. Parece que ela recebeu o de uma tia materna de quem trato no texto seguinte.

A respeito de Maria de Oliveira e de seu marido João de Bastos escreve Elysio de Oliveira Belchior em sua obra Conquistadores e Povoadores do Rio de Janeiro (p. 82):

Bastos, João de: Escrivão da Câmara da cidade do Rio de Janeiro, em exercício no ano de 1583. Saiu eleito oficial nas vereações de 1585, 1591 e 1592. Na qualidade de Procurador da Fazenda, interveio no processo de demarcação e medição da fazenda de Santa Cruz, requeridas pela companhia de Jesus em 1596. Aos 28 de fevereiro de 1592 assinou a carta de doação da ermida de Santa Luzia aos religiosos franciscanos. Este morador do Rio de Janeiro seria, provavelmente, o João de Bastos mencionado por Pedro Taques em sua nobiliarquia, casado com Maria de Oliveira, ambos naturais de Viana do Minho. Teria, então, falecido antes de 1603, pois o governador da cidade, em 29 de novembro deste ano, concedeu por sesmaria “as augoas q pidio Maria d’Oliveira dona viúva que foi de João de Bastos, q estão em Jorisinõga |Gericinó|, termo desta cidade.”

Não obstante a discrepância na naturalidade atribuída às pessoas citadas (Lisboa ou Viana do Minho), trata-se das mesmas pessoas, e também das mesmas que são citadas no registro indexado pelo pesquisador Maurício de Almeida Abreu que se lê a seguir:

Tipo de escritura: Chão
Data: 1588-09-06
Descrição: Escritura de dote de casamento que fazem João de Basto e sua mulher Maria de Oliveira a Manoel de Castilho para casar com sua filha Maria da Cunha – além de outros bens, doam “em a vargem de Nossa Senhora, a metade das casas em que ele[s] pousava[m], para a parte de Pero da Costa, que é para a parte da Camarara (sic), até entestar com o dito Pero da Costa, e o comprimento do quintal até entestar com o chão de João Lopes [Pinto], com os largos da dita a metade das ditas casas, e assim mais lhe dava[m] a metade do chão que tinha[m] junto do Mosteiro de Jesus, para a parte do dito Mosteiro, e assim mais lhe dava[m] um chão que tinha a dita sua filha em a cabeceira do chão de Aires Fernandes, entre a casa de Pacheco e a ladeira, e assim mais lhe dava[m] a metade de suas terras que tinha[m] em Jorisenogua …..” [Escritura do 1º Ofício].

Pelo que se deduz do registro acima, Maria da Cunha estava prometida para se casar com Manoel de Castilho. No entanto, Rheingantz nos informa que esse cidadão se casou com Catarina Pinto por volta de 1600, e já sabemos que Maria casou-se com Domingos Nunes Sardinha por volta de 1590. A razão pela qual o enlace matrimonial de Maria e Manoel não se realizou segue desconhecida.

A se confirmar toda a análise apresentada até aqui, esclareceu-se não só a filiação de Maria da Cunha em João de Bastos e Maria de Oliveira, como também a desta última em Martim Afonso e Antônia de Oliveira. Assim fica esclarecido que o relato de Duarte Nunes da Cunha no processo anchietano dizia respeito a algo que ocorrera com sua prima Paula, filha de sua tia materna Francisca da Cunha.

Por fim, resta esclarecer a discrepância de naturalidade entre o que Maria de Oliveira informa em seu depoimento no processo anchietano – que ela seria natural de Lisboa – e o que Elysio de Oliveira Belchior informa em sua obra – que ela seria natural de Viana. Penso que possamos aqui recorrer ao relato, encontrado em obra biográfica sobre o jesuíta João de Almeida, a respeito do casamento de Maria do Lago Prego, filha de Maria da Cunha, a filha, cuja transcrição se lê a seguir.

10 Tratava Maria da Cunha, Dona viúva, com todo o segredo, de casar a uma filha sua, por nome Maria do Lago Prego, com o capitão João Lopes do Lago, & por encontrarem os parentes dela este casamento, nem se sabia determinar a efetuá-lo. No meio desta irresolução, estando na sua fazenda, distante da cidade mais de seis léguas, lhe mandou dizer o padre ALMEIDA que o negócio que trazia em mão do casamento de sua filha o efetuasse logo, sem reparar na contrariedade do parentesco porque era assim serviço de Deus. Com este aviso, pôs em execução o casamento & julgou que o p. ALMEIDA tivera sobrenaturalmente notícia dele, porque o tratava com grande segredo, & e nem ela nem os parentes lho haviam comunicado. _ In: VASCONCELOS, Simão de. Vida do p. Joam d’Almeida da companhia de Iesu, na provincia do Brazil. Lisboa, 1658, pp. 265-266.

Antônio do Lago Prego, segundo nos informa Rheingantz (Volume II, p. 381), era filho de André Rodrigues do Lago e de Madalena Gonçalves Prego, ambos naturais de Viana do Castelo – também chamada de Viana do Minho. Ora, se Maria da Cunha, a filha, via problema no casamento de sua filha com João Lopes do Lago “por encontrarem os parentes dela este casamento” e por haver “contrariedade do parentesco”, deduzimos que havia um parentesco próximo entre os noivos, pelo que seria necessária uma dispensa de consanguinidade para seguir com o enlace. Por serem os pais de Antônio do Lago naturais de Viana, deduzimos que a ascendência das Cunha também se encontrava nessa localidade, e não em Lisboa, como declarou Maria de Oliveira em seu depoimento.


José Araújo é genealogista.


José Araújo

Genealogista

3 comentários

Irmãs – Genealogia Prática · 1 de abril de 2023 às 06:25

[…] Nunes Sardinha e nora do cristão-novo Duarte Nunes. Antes das descobertas que apresentei em texto anterior, nada se sabia sobre a filiação de Maria ou sobre a existência de irmãos seus. Sua filiação […]

Pregos – Genealogia Prática · 8 de abril de 2023 às 07:21

[…] ser conhecida pela genealogia de Antônia Tavares de Oliveira, filha de Domingos Nunes Sardinha e Maria da Cunha e neta de Duarte. Antônia casou-se no Rio de Janeiro com o Ioam Velho Barreto descrito por Alão […]

Predestinação – Genealogia Prática · 5 de maio de 2023 às 07:32

[…] título de curiosidade, padre João de Mariz era neto de Francisca da Cunha, irmã de Maria da Cunha, que foi casada com o cristão-novo Domingos Nunes Sardinha. Antônia Rodrigues (de Azevedo), […]

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