Aos cinco dias do mês de julho de mil oitocentos e quarenta e seis anos, nesta freguesia de Santo Antônio de Jacutinga, batizei sub conditione e pus os santos óleos em Julinda, inocente, batizada em casa em perigo de vida, nascida em vinte dois de fevereiro de mil oitocentos quarenta e três, filha natural de Eleutéria Rosa da Conceição, solteira. Foi protetora Nossa Senhora e padrinho Antônio Soares da Silva. Do que fiz este assento. O vigário Manoel dos Santos Silva
Julinda Dias Seabra foi minha trisavó materna e seu sobrenome composto pode ter fornecido uma pista relevante para a revelação da identidade de seu pai, cujo nome não é informado no assento de batismo que se lê acima. No assento lê-se apenas que ela era filha de Eleutéria Rosa da Conceição, que parece ter um nome estranhamente devocional, pois enquanto o da Conceição pode ser facilmente identificado como tal, o Rosa parece dúbio: seria um nome ou um sobrenome? Uma pista talvez possa ser encontrada no assento de batismo, que lemos abaixo, de um irmão de Julinda, batizado oito anos antes dela.
Aos dezessete dias do mês de julho do ano de mil oitocentos e trinta e seis, nesta freguesia de Santo Antônio de Jacutinga, batizei e pus os santos óleos em Dionísio, nascido há um ano e dois meses, filho de Eleutéria Rosa da Conceição, neto de Anastácia Rosa. Foram padrinhos Mariano Antônio da Silva e Nossa Senhora protetora. De que fiz este assento. O padre Manoel Basílio [Viana], vigário encomendado
Por esse único documento descobrimos que Julinda era filha de Eleutéria Rosa e neta de Anastácia Rosa e que esta última não tinha um nome devocional, logo o Rosa pode ter sido um sobrenome de família. Mas existia naquela região uma família com esse sobrenome na qual tivesse nascido uma menina batizada como Anastácia? E se existiu, que família teria sido essa? A segunda pergunta pode parecer irrelevante, mas não é, pois existem em minha família materna tanto ramos europeus originários de Portugal quanto ramos afrodescendentes claramente identificados por documentos e resultados de teste genético. Sobre o ramo específico em que se encontra Julinda eu não tinha nenhuma evidência além do facto de que ela mesma foi identificada como branca em seu óbito, como lemos a seguir.
No dia 21 de janeiro de 1884, depois de encomendado, sepultou-se o cadáver de Julinda Dias Seabra, solteira, branca, na idade de 40 anos, falecida de hidropsia.
O que os poucos documentos disponíveis da freguesia de Santo Antônio de Jacutinga revelaram foi do batismo, em 8 de outubro de 1794 de uma menina chamada Anastácia, que era filha de Manoel e Páscoa, cujos nomes são apresentados assim mesmo, sem os respectivos sobrenomes. O assento informa ainda que os pais da menina eram “crioulos, escravos de Domingos Jacinto Rosa“. Pela forma como foram descritos, sabemos que Manoel e Páscoa eram brasileiros, mas provavelmente filhos de africanos natos que não foram libertados – por isso os filhos mantiveram a condição de escravizados.
Anastácia teve ao menos mais três irmãos: Custódia, batizada em 1792; Sebastião, batizado em 1798 e Versílio (ou Virgílio), batizado em 1799. Os dois últimos foram identificados como escravos de Luísa Ana de Oliveira, mulher de Domingos Jacinto Rosa, que faleceu em 1795.
Domingos e Luísa Ana tiveram dois filhos – Domingos e Manoel – , que eram ainda pequenos quando ficaram órfãos de pai. Em seu testamento Domingos revelou que deixava ainda dois filhos adultos – Maria do Carmo, já casada com Francisco José Dantas; e o tenente Joaquim José Rosa, que faleceu em 1806 sem deixar descendência – sem revelar o nome da(s) mãe(s) desses filhos. O sobrenome do patriarca, nascido na Ilha do Faial, como vimos, estava ao menos em sua descendência masculina – o tenente Joaquim José – e não seria impossível que os filhos de seus escravizados adotassem tal sobrenome em algum momento.
É preciso registrar, no entanto, que houve outra Anastácia batizada na mesma freguesia de Santo Antônio de Jacutinga, filha de João e Josefa, também identificados “como escravos de Dona Luísa Ana de Oliveira”. Esta segunda também se encaixa no perfil adequado – freguesia e período – para ser a mãe de Eleutéria Rosa. Ela teve uma irmã mais velha chamada Dorotea, batizada em julho de 1799, que teve como padrinho um escravizado de Joaquim José Rosa, o citado filho de Dona Luísa Ana e Domingos Jacinto Rosa. É o registro de batismo dessa menina que lemos abaixo.
Aos vinte e um dias do mês de julho de mil setecentos e noventa e nove anos, nesta freguesia de Santo Antônio de Jacutinga, batizei e pus os santos óleos a Dorotea, nascida aos onze dias do mês supra, filha legítima de João e Josefa, escravos de Dona Luísa Ana de Oliveira. Foi padrinho Simplício, escravo do tenente Joaquim José Rosa. De que fiz este assento. _ o vigário Mariano José de Mendonça
A suposição é que a avó de Julinda – quer fosse filha de Manoel e Páscoa, quer fosse filha de João e Josefa – tivesse adotado o sobrenome Rosa no crisma, pois estaria ligada à família de Domingos Jacinto Rosa. Ela poderia ser uma mulher crioula, portanto não branca, que pode ter tido a filha Eleutéria com um homem branco. Esta última, por sua vez, teve Julinda com Pedro Dias de Seabra, outro homem branco, o que pode explicar o porquê de Julinda ter sido identificada como branca em seu óbito.
A descoberta de uma descendente contemporânea em linha matrilinear direta a partir de Anastácia poderia confirmar essa possibilidade mediante um teste de DNA mitocondrial. Segue, por ora, como mais uma hipótese em busca de confirmação.
José Araújo é genealogista.