Matéria publicada recentemente no New York Times trata dos riscos que a Inteligência Artificial (IA) apresenta para a saúde mental de pessoas sem histórico de condição psiquiátrica. Esses riscos decorrem da possibilidade de a tecnologia induzir os usuários a acreditarem em noções ilusórias a partir de uma sequência de validações e estímulos de reforço que os leve a ignorar fatos que contradigam tais noções. Mal comparando, seria como se a IA tentasse agradar aos usuários e, dessa forma, acabasse por manipulá-los. É uma descoberta bastante séria se considerarmos seu impacto global, pois só o ChatGPT responde mais de 140 milhões de mensagens diariamente apenas no Brasil, terceiro país que mais usa sua tecnologia. Para além do uso geral, já se veem tentativas de aplicações da IA na Genealogia, como atestamos pela descoberta de comunidades no Facebook dedicadas ao tema como a Genealogy and Artificial Intelligence (AI), com mais de 18 mil participantes. E também nesse segmento se veem problemas.
Minha experiência pessoal com a aplicação da IA na Genealogia já envolveu desde o desenvolvimento de um banco de dados simples para consulta de sobrenomes que podem sugerir uma origem familiar com ascendência cristã-nova até a criação da imagem de uma cena de batismo do século XVIII para ilustrar uma publicação. Em ambos os casos, pude constatar que a ferramenta empregada – o ChatGPT – exigiu algumas rodadas até que se produzisse algo minimamente aceitável. Mais recentemente, durante uma conversa com uma prima também genealogista e bastante experiente, observei algo que me pareceu ao mesmo tempo curioso e preocupante e que passo a narrar em seguida.

Tanto eu quanto minha prima temos ramos familiares ligados às terras que pertecenceram ao Morgado de Marapicu, no Rio de Janeiro. Na paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Marapicu, entre 1810 e 1828, teria nascido meu trisavô Pedro Gomes de Moraes, que deve ter sido o segundo filho de Joaquim Francisco do Rego (1766-1837) e Maria Teresa da Paz (1791-1855), casados por volta de 1810 em freguesia ignorada, talvez mesmo na de Marapicu. A incerteza se deve ao fato de que vários livros paroquiais dessa freguesia não são encontrados, por isso acreditamos que ou eles foram perdidos pelo descuido ou foram extraviados por algum pesquisador inescrupuloso.
A prima citada vem há muitos anos tentando descobrir o paradeiro desses livros, e a IA lhe pareceu uma boa aposta. Ela recorreu à ferramenta DeepSeek depois me pedir algumas informações sobre meu trisavô Pedro. Informei que:
“Pedro Gomes de Moraes, meu trisavô, deve ter nascido em Marapicu. O irmão José Gomes de Moraes também. Filhos de Maria Tereza da Paz. […] Ela se casou em 1809, então eles devem ter nascido pouco depois. Mas tenho dúvida se eram filhos do marido dela (Joaquim Francisco do Rego).”
Ela usou essas informações para alimentar a IA e retornou com a seguinte resposta:
Registro de Casamento (1812) – Transcrição Paleográfica – Livro 2 de Casamentos (1800-1820), folha 25: “Aos catorze de Maio de mil oitocentos e doze, nesta Capela de N.S. da Conceição de Marapicu, receberam-se em matrimônio Joaquim Francisco do Rego, solteiro, filho de Manuel Francisco e Antônia Maria, naturais da freguesia de São Vicente de Braga, Arcebispado de Braga (Portugal), com Maria Thereza da Paz, solteira, filha de Manuel da Paz e Catarina Maria, desta freguesia. Testemunhas: Capitão Francisco Pereira e José Antônio Chaves. Para constar, assinou: Padre Inácio Mendes.”
A transcrição apresentada causa estranhamento ao genealogista experiente pela ausência de expressões bastante comuns em assentos matrimoniais até o século XIX como “segundo o Sagrado Concílio Tridentino e Constituições do Bispado” e “filho(a) legítimo(s) (ou natural) de” após o nome de cada nubente. A menção aos fatos de os nubentes serem solteiros era incomum, embora pudesse haver menção ao fato de um deles haver enviuvado. Quanto aos dados factuais, não houve nenhuma informação correta, pois Joaquim Francisco do Rego e sua mãe Rosa Maria dos Santos eram brasileiros, enquanto seu pai Francisco do Rego era natural de São Miguel dos Açores. A nubente Maria Teresa da Paz, por sua vez, era natural de Sacra Família do Tinguá (RJ) e filha de Francisco Gomes Pereira e Inácia Angélica de Moraes.
Mais curioso é que o DeepSeek apresentou como padrinho do suposto matrimônio o cidadão José Antônio Chaves, que minha prima identifica como seu pentavô e que certamente havia sido alvo de pesquisas dela na ferramenta. Minha suspeita é que a IA tenha usado elementos familiares a ela para induzi-la a acreditar que em algum repositório digital até então desconhecido de nós existiria um Livro 2 de Casamentos (1800-1820) em cuja folha 25 se poderia ler o assento transcrito acima. O DeepSeek estaria involuntariamente tentando agradar a sua usuária apresentando uma resposta positiva ainda que ela não correspondesse aos fatos, dos quais o mais sério tem a ver com a inexistência do livro paroquial.
José Araújo é genealogista.